A Face doce e suave da envelhecencia - por Teia Camargo

 

Ficar velha nunca me apavorou. Talvez porque eu tenha convivido com o processo de envelhecimento em sua plenitude por toda minha vida. Meus pais casaram-se tarde e sou a filha mais velha de uma mulher de quarenta e quatro anos, que na década de sessenta, quando eu nasci, era considerada uma senhora.   

Se você prestou atenção ao parágrafo anterior, deve estar se perguntando: filha mais velha? então essa mãe tardia teve outros filhos após os quarenta e quatro? A resposta é sim e não. Sim, ela voltou a ser mãe e não, não foram "filhos" no plural. Apenas mais um, meu irmão que nasceu quando ela estava prestes a completar quarenta e sete. 

Nós dois crescemos sendo chamados de "filhos de velhos" e querem saber? foi um ótimo aprendizado! Meus pais lidavam com tamanha naturalidade com o tal do passar dos anos - e eu diria até que com um certa dose doçura - que não demonstravam medo, tampouco resistiam à aceitação do inevitável. A vida para eles era para ser vivida e não desperdiçavam energia competindo contra o tempo. Acreditavam que o envelhecer fazia parte da evolução natural do ser humano e às dores na juntas e alguns probleminhas de saúde típicos da idade, somaram um aprendizado constante que lhes trouxe de bônus sapiência e evolução de espírito.  

Lembro-me bem de ouvi-lo repetir uma das célebres frases de impacto que ele tanto apreciava exclamar. A quem lhe demonstrasse preocupação e horror a ficar velho, era apresentada uma alternativa clara e indiscutível: "Ah! Não quer ficar velho? Então, trate de morrer!" Simples assim!

Práticos e objetivos ao lidar com as questões adversas e as contrariedades, não tinham espaço em suas agendas lotadas de gracejos e bom humor para melodramas e questionamentos de ordem existencial. Gostavam tanto da vida que ficaram por aqui bastante tempo. Ele se foi aos oitenta e quatro anos e ela nos deixou alguns anos, após completar oitenta e nove. Eram pessoas humildes, pacatas, de sorriso franco, bondade extrema e simplicidade cativante e embora fossem católicos fervorosos, passavam longe de radicalismos e intransigências. 

Desenvolveram uma forma peculiar de entendimentos dos dogmas e preceitos da Igreja, sem que isso abalasse sua convivência com a comunidade cristã e conseguiam conciliar militância religiosa com comportamento acolhedor e generoso em relação a qualquer um, independente do peso, cor, sexo, religião, raça, beleza ou falta dela, tratando-os por iguais. Não quero dizer com isso que aceitassem de tudo. Não! Tinha lá suas convicções e não concordavam com determinados comportamentos, mas diziam: "Se não estão prejudicando ninguém, não temos nada com isso" e, portanto, no nosso espaço democrático, as restrições - rigorosas, por sinal - diziam respeito aos maus caracteres, trapaceiros, toda ordem de perversos e usuários de drogas e outros vícios ilícitos, também não eram bem-vindos no recinto familiar. 

Aos olhos de agora seriam considerados "vovós avançados", "idosos de vanguarda". A casa, quando os filhos entraram na adolescência, foi precursora desses ambientes "vinte e quatro horas" que fervilham por aí. Meu irmão, notívago inveterado, aparecia com os amigos no meio da noite e lá ia minha mãe em sua pacífica tranquilidade para a cozinha preparar um lanchinho ou descascar os camarões que os "meninos" compravam na Cadeg, um entreposto de pescado no subúrbio do Rio de Janeiro, primo pobre do exuberante Ceagesp paulistano. Pela manhã, era minha vez de entrar em cena com as amigas ou as coleguinhas da escola que apareciam com a desculpa de realizar o trabalho em grupo, mas na verdade estavam interessadas nos fantásticos bolinhos de chuva polvilhados por uma mistura de canela e açúcar que saboreávamos às dúzias. Tudo isso acontecia sem que ouvíssemos um resmungo que fosse de nossa mãe que saía da cama na maior boa vontade para aplacar a fome da "galera" ou largava seus afazeres domésticos para bater os ovos com o garfo e preparar os bolinhos apreciados pelas "meninas".  Uma dessas minhas amigas, hoje uma médica bastante prestigiada, quando me encontra, logo após me cumprimentar vai emendando: "Ai que saudades dos bolinhos de chuva da sua mãe. Eram fritos, muito calóricos,  mas não engordavam, nem aumentavam o colesterol porque o amor e a farra neutralizavam tudo isso" e damos risadas juntas pelas lembranças saudosas. 

Ao meu pai cabia o papel de supervisão da "segurança" familiar. Não dormia enquanto não chegássemos em casa e mesmo após nossa maioridade, continuava a postos enquanto guardávamos o carro na garagem. Contava apenas com a arma da fé em se acreditar um "super pai", possuir dos poderes de deter com seu zelo amoroso os perigos mundanos. E dava certo! Graças a Deus nunca fomos atingidos pelo mal que rondava a rua, a noite, a vida. 

Os pais dos amigos, muito mais jovens do que os nossos, também pareciam acreditar nesses poderes mágicos, pois com frequência deixavam os filhos sob o cuidados dos "senhores" vizinhos e isso colaborou em muito por transformar nossa casa num porto seguro, referência de abrigo, para onde a garotada do entorno corria, a qualquer hora, em qualquer época, com qualquer desculpa.

Nenhum dos dois praticava atividade física. Em compensação não fumavam. Meu pai não bebia uma gota de álcool, mas minha mãe, essa adorava uma boa dose de whisky, desde que fosse cowboy, pois dizia que o gelo tirava o gosto da bebida. Cozinhava o trivial. Aprendeu a se entender com as panelas depois de casada e nos criamos dentro das normas estabelecidas por ela para os horários de refeição que incluíam o aperitivo antes do almoço. Um pastelzinho, um bolinho feito com as sobras do arroz do dia anterior, um naco de queijo do reino, sempre acompanhados de um refresco para meu pai - naquela época não se usava suco de frutas - e a sua dose de whisky que era consumida aos goles, enquanto o almoço era preparado. Depois disso não bebia mais nada. 

Vão vendo! Os filhos tinham prioridade em quase tudo dentro de casa, mas eles souberam preservar um momento só deles, aquela coisa de casal, quando ninguém mais tem o direito de se envolver e assim restava-nos esperar com impaciência e barriga roncando a hora em que o papo e o petisco acabassem para almoçarmos. Deve ser por isso que eu adoro beber minha taça de vinho enquanto preparo alguma coisa para comer e não me empolgo muito com as harmonizações vinho/refeição que os someliers tanto propagam. 

 

Nem tudo foram flores, nem tudo foi um mar de rosas, mas eu acredito que a experiência de ter sido "filha de velhos" me fez enxergar a velhice com os olhos da simplicidade. Velho é velho, moço é moço, criança é criança e penso que se soubermos viver cada uma das fases com a alma aberta, o peito em festa e o coração a gargalhar, aproveitaremos o que de melhor a vida tiver a nos oferecer. 

Não me iludo quanto ao que me espera. Sei que daqui para frente haverá algumas limitações e me esforço para ter saúde, habilidade e bom senso ao lidar com elas. Desejo uma velhice tranquila, salpicada com uma boa pitada de animação. Também desejo que antes do momento derradeiro, eu possa assistir nossa sociedade tomar o rumo da decência e do respeito e que consigamos nos livrar desse estado de coisas em que vivemos, onde um abominável vale tudo vem sendo promovido por gente que vale nada.

 

Por Téia Camargo, 

18/03/15

 
 

 

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