A Vida dos Tapetes - por Fernando Jacques - JAX

A Vida dos Tapetes - por Fernando Jacques - JAX

A VIDA DOS TAPETES

JAX

 

            Era um tapete oriental finamente trabalhado, que o próspero fazendeiro dera à sua mulher no segundo aniversário de matrimônio. De dimensão mediana, de 1,80 por 2,40 metros, o objeto de luxo percorreu o quarto do casal, um dos quartos de hóspedes e o salão de estar até se fixar, anos mais tarde, na ante-sala da biblioteca da mansão.

            Ao longo desse trajeto, participou de variados episódios no dia-a-dia da casa e da família que o acolheram. Assistiu ao nascimento do terceiro, do quarto e do quinto filhos do casal, ali mesmo no dormitório principal, uma vez que o fazendeiro não queria que a mulher parisse no hospital da cidade próxima, embora reconhecesse a qualidade dos seus serviços e mantivesse sólidos laços de amizade com o diretor e a equipe médica, contribuindo amiúde para a manutenção financeira da entidade. A chegada do quinto filho causou susto, pois a bolsa d´água rompeu-se antes do previsto e D. Catarina chegou a ter pequena hemorragia. Gotas do sangue materno salpicaram o tapete, mas sem o macular irremediavelmente. Uma lavada bem cuidada e mal se percebia o incidente. O moleque, apesar de prematuro, também nada sofreu. Cresceu e tornou-se forte, como os irmãos e irmãs, para orgulho dos pais. Por precaução, no entanto, o fazendeiro e a mulher esperaram dois anos antes de completar sua prole com mais três partos sucessivos. Estes, o tapete não presenciou, pois já se havia transferido para o quarto de hóspedes.

            A limpeza do tapete era sempre feita manualmente, sem o uso do potente aspirador de pó disponível na fazenda, produto de origem alemã, igualmente considerado de luxo. Temiam os patrões que a aspiração potente pudesse afetar os pelos do tapete, diminuindo sua longevidade. As mucamas cuidavam de limpá-lo periodicamente, com panos, escovas macias e, sobretudo, com muito, mas muito cuidado.

            De tempos em tempos, o tapete era levado para fora e um dos empregados batia no bicho, também com cuidado, somente o suficiente para tirar o pó. Ai de quem exagerasse nas bordoadas! O serviço era observado pela dona da casa e, às vezes, pelo próprio fazendeiro, que não escondiam seu zelo pela valorizada peça de decoração. Enchiam-se de prazer quando os visitantes elogiavam a beleza e a qualidade do tapete. E, naturalmente, o bom gosto de quem o adquiriu.

            Bater o tapete incumbia frequentemente ao Evando, empregado da fazenda desde os dez ou onze anos.  Nem o pai sabia bem a idade do filho, mas ele devia estar nessa faixa ao vir reforçar a mão-de-obra que plantava e colhia mandioca, tocava o gado do pasto para o curral e vice-versa, limpava o galinheiro e os estábulos, escovava os cavalos, levava a ração dos porcos, enfim, fazia um pouco de tudo ali e auxiliava os empregados mais experientes, conforme a necessidade. Já adolescente, dotado de corpo ligeiramente maior e de força física para a tarefa, Evando conheceu o tapete que devia livrar do pó. Como raramente o chamavam para algum serviço dentro da residência, o rapazote só veio a tomar conhecimento da obra de arte oriental quando as mucamas o estenderam no varal para a limpeza a seco. A partir daí, os elos entre ambos estenderam-se.

            Assim como o tapete, Evando recebeu constantes bordoadas durante sua vida. A grande diferença é que quem bateu nele nunca lhe retirou o pó da dor e da mágoa imensas. Da infância pouco ficou: o casebre de pau a pique e a imagem de pais igualmente sofridos como ele, ocupados até a alma pela dureza do cotidiano miserável, sem tempo para o carinho familiar. Dos brinquedos, lembrava-se vagamente do taco de madeira de um assoalho, achado ao léu, que, nas suas mãos, virava ônibus, caminhão, carro de boi e até garrucha ou espada. Diversão mesmo representavam as pedras fartas no terreno, as quais aprendeu a arremessar com maestria em direção a toda espécie de alvo. Já adulto, continuava a servir-se dessa única destreza para conseguir alguma fruta que lhe aplacasse a fome ou matar aqueles pássaros cantadores, cujo canto lhe martelava os ouvidos como que um deboche. Deles, ao menos, podia vingar-se.

            Analfabeto, franzino e até um pouco feio, seu poder de comunicação ficou ainda mais restrito pelas agressões sofridas. Tornou-se de pouco falar e acostumou-se a olhar pro chão quando o fazia. Ainda menino, converteu-se em um dos muitos empregados da fazenda e teve de aprender diversos ofícios, com resultados sofríveis e nada gratificantes, fosse do ponto de vista pessoal ou financeiro. Enquanto trabalhador infantil, seu único ganho consistia na comida que ele e os demais recebiam. Se havia pagamento em dinheiro, quem o recebia era o pai, que passava todo mês pela fazenda, mas, na maioria das vezes, ia direto ao capataz e não via o filho. Depois de adolescente, surpreendeu-se um dia ao ser chamado a receber seu salário pela primeira vez. Desde então, passou a ser assim e nunca mais soube do pai, da mãe ou de qualquer irmão. Precisou da ajuda de outro empregado para saber o que aquelas poucas cédulas poderiam comprar em suas raras idas à cidade.

            Nem todo mês recebia, porém. Em várias ocasiões, o capataz dizia que Evando incorrera em gastos extraordinários, que deviam debitar-se do salário. O jeito era resignar-se e juntar o necessário a saciar seus limitados desejos: alguma comida, bebida e os serviços das prostitutas no bordel da cidade.

            Por mais fino que seja, tapete também sofre suas humilhações. Para começar, é feito para ser pisoteado. Se o fazendeiro e D. Catarina não vigiassem, os filhos pequenos aprontavam mais do que mera pisadas. Comiam seus doces e biscoitos, sentados sobre o pobre tapete, enchendo-o de migalhas e expondo-o à gula noturna de baratas e formigas. Também insistiam em rolar seus carrinhos de metal, trazidos dos EUA, na maciez do tecido oriental, que tinha de suportar a dor das curvas e das freadas mais bruscas. Pior ainda era a baba viscosa daqueles moleques que ainda engatinhavam ou mal se sustentavam de pé, desabando pesadamente sobre os belos desenhos de flores e animais. Apesar da vigilância do casal, o tapete tampouco deixou de ser batizado pelo xixi das crianças e ainda passou pelo dissabor de um cocô espirrado da fralda. A pronta ação de limpeza das mucamas pareceu extinguir os efeitos deletérios desses dejetos humanos, segundo o abalizado senso visual e olfativo dos donos da casa, mas, no rés do chão, a sensação de sujeira e o odor fétido permaneceram vivas na requintada obra artesanal.

            Mal havia tempo de recobrar-se de tais intempéries. Quando imaginava que poderia descansar, lá ia o tapete para o varal, a fim de receber as bordoadas de Evando, nem sempre suaves. Na verdade, bastava o rapaz perceber que não estava sendo observado em seu trabalho por um instante e já descarregava uma pancada mais forte no tapete, como que a retaliar, no objeto, as agruras a que se via diariamente submetido. 

            Bater a poeira do tapete virou sinônimo de vudu praticado contra os fazendeiros, o capataz e até mesmo os empregados que maltratavam Evando. De certa feita, as batidas mais firmes visaram à nova ajudante de cozinha que, de forma vil e perversa, denunciara haver o rapaz surrupiado um pedaço de charque da despensa. Isso lhe custou uma surra e tanto, que quase o fez chorar de dor. Com a denúncia, aquela ajudante ordinária certamente quis atrair as boas graças dos patrões, especialmente do fazendeiro, que todos sabiam ser habitualmente generoso com sua mão-de-obra feminina.

            Evando havia adquirido notável resistência à dor, tantas foram as surras físicas que lhe impuseram. Ainda garoto, mas já cansado das duras condições do trabalho diário na fazenda, decidiu fugir. De madrugada, antes de todos despertarem para o trabalho, recolheu as poucas coisas que tinha de seu e partiu. Inexperiente, sem saber ao certo aonde ir, seguiu pela estrada rumo à cidade. Mal ali chegara e começara a perambular pelas ruas, em busca de esconderijo ou de eventual transporte para mais longe, uma rádio-patrulha local o interceptou e o conduziu de volta à fazenda. O capataz o aguardava e, munido de vara de bambu bem escolhida, ministrou-lhe tamanha sova que logo o fez esquecer das pancadas recebidas dos policiais dentro da viatura no percurso desde a cidade.

            Na segunda tentativa de fuga, aos dezessete anos, Evando decidiu atravessar a mata ao sul da fazenda em direção a outra cidadezinha mais distante, de cuja existência fora informado. Aproveitando mutirão para cortar árvores, afastou-se aos poucos do grupo e embrenhou-se na floresta. Tudo marchou bem até encontrar e cruzar o riacho no meio do trajeto. A partir dali, veio a perder-se e a caminhar por horas sem rumo até a chegada da noite e o risco de cruzar com animal feroz. Encarapitou-se no alto de uma árvore e permaneceu no local até o amanhecer. Depois de várias horas sem atinar com o rumo, sentiu momentâneo alívio quando o pessoal da fazenda o localizou. A distância em que se encontrava liquidou sua desculpa esfarrapada de que se afastara sem querer. Estava mais do que evidente a tentativa de nova fuga. A surra, ao voltar, culminou com cortes pequenos, mas profundos, em seus pés, que, mesmo após cicatrizarem, deixaram seqüelas, impedindo-o desde então de correr e até de caminhar mais célere, em razão das dores permanentes.

            Tempos depois disso, Evando percebeu que o tapete também havia sido ferido. Reparou, num dos cantos, a marca escura, feito cicatriz. Queimadura de cigarro ou de charuto, causada por algum hóspede descuidado, sem dúvida. Nessa época, o tapete estava a adornar o quarto dos visitantes, cuja taxa de rotatividade refletia o prestígio do dono da fazenda. Vinham parentes, políticos da capital, compradores de gado e da produção agrícola do lugar, até artistas famosos. Com tanta gente vindo ali, não surpreendia que a fina peça oriental corresse riscos. De nada lhe valeu a benção protetora que o pároco local lhe fez, para agradar o fazendeiro e sua mulher, em reconhecimento das doações sempre generosas à igreja. Cientes da falibilidade da proteção religiosa, o fazendeiro e sua mulher decidiram, após alguns anos e novas queimaduras, transferir seu precioso objeto de lugar. Após breve experiência no salão de estar, D. Catarina cedeu aos comentários das primas de que ali não combinava com a decoração e decidiu destiná-lo a outro cômodo.

            Evando foi então chamado pelas mucamas a ajudar na tarefa de levar o tapete para a ante-sala da biblioteca. Nessa rara ocasião de entrar na casa dos patrões, o rapaz também conheceu a imponente biblioteca, outro ponto de orgulho do fazendeiro, não só pelo bom número de obras eruditas, com rica encadernação, ali exibidas, mas também pelas vistosas obras de pintura e tecelagem que decoravam as paredes. Evando olhou tudo aquilo sem qualquer brilho de deslumbramento no olhar, o que certamente levou uma das mucamas, mais antiga na casa, a fazer-se de entendida, dizendo que eram trabalhos de muito valor, de uma tal “renacência”. O rapaz continuou, contudo, a olhar as pinturas e tapetes sem maior interesse e pensou lá consigo que aquelas mulheres gordas e despidas dos quadros não davam o menor tesão. As prostitutas da cidade pareciam-lhe bem mais atraentes.

            Em sua nova pousada, o tapete deixou de correr maiores riscos de queimaduras. Em compensação, com a progressiva chegada dos netos do fazendeiro e de sua mulher, voltou a sofrer as incursões ocasionais das babas e demais dejetos da nova geração. Os cuidados da vigilância exercida por seus donos sobre os filhos nos tempos de outrora já não se revelavam tão presentes na natural cumplicidade dos avós com as traquinices dos netos. Até achavam divertido ver os guris a pisotear o pobre tapete com seus pés sujos, encostar nele o rosto lambuzado de toda sorte de alimentos e martelá-lo com as mãos nuas ou armadas de cavalos de pau e outros objetos contundentes.

            Evando notou a gradual degradação do tapete nas vezes em que lhe batia o pó. Não era por piedade, porém, que já o golpeava com menor vigor, quando sentia que não era observado. Sua força vinha reduzindo-se por obra de uma diarréia persistente, que complicara sua vida ainda mais. Diziam os peões que contraíra vermes, talvez em virtude do hábito de tentar saciar a fome com parte da lavagem que levava para os porcos todos os dias. Nem os chás de ervas recomendados pela cozinheira, nem os remédios obsequiados pelo farmacêutico ao fazendeiro, conseguiram extinguir o mal. O rapaz mal conseguia completar uma tarefa sem correr para o meio das bananeiras várias vezes, para impaciência do capataz e dos companheiros de trabalho. Definhava a olhos vistos, mas, se alguém chegou a pensar que necessitava ver um médico, jamais se animou a levantar tal hipótese. Afinal de contas, o destino final de todo homem é morrer.

            Talvez pela proximidade da biblioteca, o tapete veio a contrair doença igualmente mortal. Traças, bem alimentadas pelas obras renascentistas, invadiram o território oriental e causaram-lhe danos insuperáveis. Com certa contrariedade, mais do que tristeza, seus donos ordenaram às mucamas que retirassem o passado objeto de decoração e o jogassem à fogueira. Já dispunham de outro belo tapete para seu lugar.  

            No mesmo dia, os peões enterraram Evando em um canto distante da propriedade, sob a orientação do capataz. Também já havia um rapazola, pronto a substituí-lo.

            A vida de ambos os tapetes não chegou aos trinta anos.

 

In Traços e Troças (2015), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo,SP

 

 

 

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