3005 - Planeta sem flores - por Giovane da Silva Santos

3005 - Planeta sem flores - por Giovane da Silva Santos

3005 - PLANETA SEM FLORES

 

A azulada e gélida luz do cilindro holográfico de mapeamento genético terminava mais um monitoramento do percentual de fluido vital de meu corpo, desnudo sobre a maca flutuante em que me deitava todas as manhãs em obediência aos procedimentos da Sonda Subterrânea 3005, na sala de inspeção. Imagens de uma natureza inexistente eram projetadas na abóboda branca daquele ambiente de cores leitosas. Sentia uma estranha sensação de aconchego e proteção, enquanto ecoava, por todas as paredes, Elephant Gun, a canção da antiga banda Beirut, que me guiava naquela viagem por um mundo, que nunca cheguei a conhecer. Orquídeas, crisântemos, begônias, artemísias, girassóis, açucenas e azaleias floriam em verdejantes campos, que viraram mito para meus contemporâneos.E só resurgiam, agora, nas recordações dos remanescentes daqueles dias em que as ondas gigantes varreram as cidades litorâneas de nosso globo, nas últimas décadas do século XXI.

Meu nível de gasto energético mantinha-se nos padrões desejados para as funções daquela Colônia repleta de jovens e erguida num velho bunker no coração da América Latina. Naquela sala nosso futuro era definido diariamente: o pertencimento ao grupo ou o exílio na hostil e inóspita atmosfera da superfície. O engenheiro genético devolveu meu macacão de lycra cinza-claro e meu crachá de identificação renovado: Decan BR-17. O primeiro nome foi dado por meus pais, antes de morrerem na quarentena por conta dos efeitos dos gases que intoxicaram a atmosfera, após a explosão da cadeira vulcânica do Yellowstone no extinto hemisfério norte. E a sigla numérica era a localização do meu país de origem: um tal de Brasil. Vesti-me rapidamente. A ansiedade de encontrar minha esposa Yasmim ARG-25 era enorme. O seleto grupo de botânicos no qual ela ingressara, por direcionamento do Conselho Supremo da Gaia, conseguiu produzir, em um ambiente simulado, espécies de flores semelhantes àquelas que víamos nas projeções diárias na sala de mapeamento.

Mal sai do corredor da ala de monitoramento genético, Juleano BR-17, puxou-me pelo braço, dissimulando sua expressão de perplexidade e indignação. Cabelos em desalinho, óculos de aro redondo meio torto, meu melhor amigo carregava-me, sem uma mínima explicação, para o corredor da Ala Z, abrindo portas com cartões de acesso magnético e implorando com os olhos, que não desse um pio. Não havia um ponto cego naquele lugar e todos os nossos gestos, emoções e intenções eram monitorados pelos Guardiões.Entramos no grande depósito de dejetos orgânicos, expelidos pelas tubulações de esgoto para tratamento, onde as câmeras de vigilância haviam pifado recentemente.

"Se o motivo que me trouxe a essa latrina fedendo à bosta for mais uma de suas teorias conspiratórias, juro que te denunciou para o Conselho por esquizofrenia...".

"Eu fui à Zona Proibida durante o grande apagão, que os Tutores disseram ter sido gerado pela colisão de um meteorito com nossa crosta... e o ar, Decan. O ar é totalmente respirável!". Sua voz era uma mistura de riso e choro ao desabafar aquela descoberta."Esses filhos da mãe estão nos enganando! Além dos limites da Floresta Petrificada, existe um muro que esconde toda a Verdade! Eu quase consegui escalar aquela muralha e tive impressão de ver.... de ver flores vivas, animais...".

"Você fez o quê?!". Uma intensa perplexidade me fez emitir um fino fio de voz com medo de sermos escutados. Juleano não tinha nenhum traço de intoxicação, ferida na pele ou sangramento nas mucosas, sinais encontrados nos indomados companheiros que morreram ao atravessar o perímetro de segurança da Sonda 3005. "Isso é mais uma das suas! Ninguém nunca voltou da Zona Proibida!".

"Ou foram executados para calar a verdade, Decan! Não é estranho que nenhum de nós tenha lembranças de nossos pais vivos! Os adultos mais velhos com quem temos contato, desde bebês, são esses malditos Tutores, que norteiam nossas escolhas como se fôssemos ratinhos de laboratório!".

"Seja isso verdade ou não, se descobrem que atravessou a fronteira, você será condenado à quarentena e à execução mortal pelo Conselho! Você não mediu as consequências do que fez!". Suava de medo, apavorado com o destino de Juleano.

"Sabe por que aceitei coordenar a Sala dos Livros da Antiga Civilização?!". Juleano me peitou como se estivesse prestes a revelar a origem da vida no Universo.

"Porque adora mulheres mais velhas e se apaixonou pela Tutora Jade?!". Não consegui segurar minha verve irônica. "Complexo de Édipo! Hormônios à flor da pele! És metido a conquistador! Sabe que nossa política de fertilidade controlada lhe permite se deitar com qualquer fêmea desta Sonda, sem risco de gravidez. Você inventa essas teorias doidas para esquecer o fogo interno que Asmirar lhe desperta, a única com quem não se envolve, porque teme sentir aquilo que os Tutores chamam de Amor, Paixão, o sentimento que levou nossos antepassados à derrocada! E chega de alucinações de que existem flores e vida sobrevivente na Zona Proibida!".

"Asmirar atravessou a fronteira comigo e já sabe de tudo!". Aquela sua confissão soou como um tapa na minha sapiência arrogante."Podes ver que não fujo do Amor, muito menos da Verdade! Fui trabalhar entre os livros para encontrar, nas entrelinhas daqueles compêndios do velho mundo, uma pista sobre o que é realmente este lugar. E escutei uma discussão da Tutora Jade com o Guardião Órion sobre ela não suportar mais assistir pessoas imersas num mundo ilusório sem a chance de serem como os Outros! Essas pessoas somos nós e os Outros, aqueles que vivem além dos muros!".

"Como tem certeza de que ela não falava de outra coisa qualquer?! Que motivos eu teria para sair daqui?! Essa história das flores até me encantou mas não é suficiente...".

"Yasmim está grávida e não pediu autorização do Conselho! Está de bom tamanho?!".

"Isso é impossível! O mapeamento genético inibe nosso nível de fertilidade!".

"Por que acha que ela se isolou no laboratório de botânica?! Os pesquisadores podem ficar dias sem ir à sala de inspeção, para não contaminar suas criações com a radiação do leitor holográfico. Só que amanhã ela passará pelo scanner e eles a obrigaram a abortar... seu filho!".

Quase entrei em parafuso. Um filho!! Seguia regiamente as normas do Conselho sobre o equilíbrio populacional, mas não admitiria que encostassem um dedo em Yasmim ou naquela criança.

"Ela confessou tudo à Asmirar, que entregava as refeições dos pesquisadores durante o apagão! E o pior é que quando a energia se estabilizou, ela viu, nos monitores do laboratório, flashes de pessoas vestidas como nossos antepassados, na rotina comum de suas casas, sentados de frente para o visor como se nos assistissem. Seis imagens identificadas por legendas com o nome de extintos lugares: Espanha, Vaticano, Estados Unidos, Alemanha, Japão e Israel!". As entrelinhas no olhar de Juleano me convenciam de que ele falava sério."Eu não sei o que há por trás disso, mas precisamos sair daqui!".

"Mesmo que exista um mundo lá fora e sejamos peças de um grande reality show, todas saídas são controladas pela Central Holográfica!".

"Que ficaria impotente diante de um novo apagão! Uma queda súbita nos geradores de energia e todas portas se abrem! Temos uma aliada conosco! A Tutora Jade se prontificou a distrair os operadores da Central de Energia com sua, digamos, experiência de mulher madura e uma droga entorpecedora, que nos dará cinco horas para ganharmos o mundo. Além disso, ela prometeu me entregar um presente que explica o que somos e que pode mandar tudo isso aqui pelos ares! Então?! Vem comigo ou prefere assumir o luto de um filho condenado à morte?!".

Quando a energia motriz dos geradores que controlavam o acesso a todos portais de saída da Sonda 3005 cessou naquela madrugada, eu, Yasmim, Juleano e Asmirar atravessamos, como maratonistas, as tubulações purificadoras de oxigênio. Todos vigilantes de segurança foram comunicados de um possível motim. Vigiada à distância por sua constante mudança de humor nos últimos meses, não demorou para que encontrassem resquícios do sonífero, inalado pelos operadores de controle, nos pertences da Tutora Jade.

Um alerta holográfico, em todos os setores da colônia, exibia nossos rostos como desertores e ordenava o recolhimento de homens e mulheres em seus dormitórios, até que o mal, que atingia a Sonda, fosse extirpado. Fomos caçados como animais pelos Guardiães naquela tubulação. Dardos elétricos atingiam nossos corpos como uma sessão de eletrochoques. Porém, conseguimos alcançar o portal que dava acesso à Floresta Petrificada. Asmirar torceu o tornozelo e quase nos atrasou, amparada em nossos ombros. O desejo de salvar meu filho e ver as lendárias flores fazia-me sublimar todos os medos, todas as dores, que tentavam me possuir naquela fuga sem escalas. Precisávamos despistá-los com urgência.

Deparamo-nos com um cadáver masculino nu e desfigurado na beira de um riacho. Mais adiante, outros três corpos, ainda não enrijecidos, também irreconhecíveis. Duas mulheres e um homem, igualmente despidos, boiavam na água. Eram recém-exilados da Sonda, rejeitados pelo rotineiro exame de mapeamento genético. Nossa salvação estava ali. Apesar do pudor inicial das mulheres, convenci todos a tirarem seus macacões com identificação e os vestirem naqueles corpos, que colocamos em atalhos da Floresta, como se tivéssemos caído nas armadilhas criadas, para impedirem a entrada de curiosos naquele perímetro. Sangramos levemente nossos braços e esfregamos nosso DNA nas feridas daqueles cadáveres. Escondemo-nos numa gruta oculta pelo véu de uma cascata, quando os Guardiões chegaram com cães farejadores e, aparentemente, caíram em nosso engodo. Levaram seus troféus para os desovarem em algum lugar, onde jamais seriam encontrados.

Lágrimas de alívio escorreram no semblante de Juleano que, só então, abriu o presente dado pela Tutora Jade. Era um pequeno projetor holográfico. Assim que o acionamos, vimos nossas imagens quando crianças, uma série de recortes de páginas de jornais com manchetes sobre bebês desaparecidos de orfanatos nos últimos vinte cinco anos. E o vídeo de uma conferência de empresários e representantes políticos da Espanha, Vaticano, Estados Unidos, Alemanha, Japão e Israel, articulando um experimento de cunho totalitário com pessoas facilmente esquecíveis, invisíveis sociais: os órfãos. Um ensaio para uma conspiração, que seria reproduzida, futuramente, a nível mundial com as massas amedrontadas com guerras bacteriológicas, ataques terroristas e cataclismos devastadores. Aqueles filhos da mãe nos arrancaram todo o referencial de um mundo normal, toda possibilidade de erros e acertos e nos tornaram peças de um tabuleiro de xadrez. Só que agora o xeque-mate era por nossa conta.

O sol já estava a pino, quando chegamos a muralha, que nos separava da Verdade. Nus como os primeiros habitantes da infância deste planeta, os novos casais deserdados do Paraíso, escalamos aquelas colunas de pedras, descemos seus relevos e nos deparamos com um vasto campo de flores. Orquídeas, crisântemos, begônias, artemísias, girassóis, açucenas e azaleias como jamais imaginávamos. A alguns metros uma rodovia asfaltada, um outdoor anunciando 'Feliz 2025!' e sinais de uma metrópole no horizonte. Um veículo motorizado cruzou os céus. Era um Boeing, que só víamos nas ilustrações da Sala dos Livros. Roubamos roupas do varal de um casebre a léguas dali. Estávamos prontos para irmos à cidade mais próxima. Precisávamos revelar o que estava acontecendo. Tirar aqueles outros jovens de lá. Uma riponga pilotando um bugre parou ao nos avistar. Sorridente, olhou-nos como se viéssemos de Marte e ofereceu carona. Eu aspirava o perfume do buquê das variadas flores que colhi daquele campo, fascinado com aquelas espécies. O mundo como conhecíamos desmoronava. O que nos esperava? Não podíamos mensurar. Mas com certeza morria o planeta sem flores e sem escolhas.                                                                              

Conto de Giovane Santos,  publicado na Antologia SOLARIUM 3  da editora  MULTIFOCO organizada por Frodo Oliveira em Fevereiro de 2014.

 

 

 

 

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