Fragmento do livro 'Sua vida pode ser um musical' do autor Giovane da Silva Santos

Fragmento do livro 'Sua vida pode ser um musical' do autor Giovane da Silva Santos

Fragmento do livro ‘Sua vida pode ser um musical’

 

Fly me to the moon. Let me play among the stars. Let me see what spring is like on Jupiter and Mars.Estalando os dedos, com enormes fones cobrindo as orelhas e um gingado frenético na cintura, eu extravasava toda minha verve dançarina, enquanto gravava no aquário acústico do estúdio fonográfico mais uma faixa do cd do musical Rádio Pirata que chegaria às lojas daqui a três meses, se nenhuma zebra ocorresse com sua prensagem e finalização na Zona Franca de Manaus.

Eu sentia a respiração quase suspensa das estagiárias, que acompanhavam a captação do áudio com o operador da mesa de som. O eriçar das penugens loiras de suas nucas róseas. Os lábios de batom que aguavam só de escutarem meu vibrato. Elas me lanchavam com os olhos. Ainda mais quando sorria e ressaltava a pequena e sexy mancha marrom em forma de pitanga do canto da bochecha esquerda. Se não tivessem a trava do senso moral, eram capazes de me imobilizar e sugar todas as minhas energias como abelhas-rainhas, sedentas pela perpetuação da espécie. Só que o mais atrevido de todos os olhares era o que a chatinha da Cássia exibia do outro lado do vidro do aquário. Ela fazia caretas irônicas. Aquela morena de olhos de jabuticaba e sorriso sapeca, pupila de Débora Colker, com certeza arrancou o endereço do Jarbas.

E o pior é que ela desafiava-me com seu jeito desconstrutor e nada subserviente. Encarava-me pela lâmina de vidro, como se planejasse nosso futuro, sem consultar se eu desejava fazer parte dele. E eu fazia o máximo para fingir que ela em nada me afetava.

Sabia bem a atração que eu provocava nas mulheres. Aliás, usufruí bastante desse talento instigado pelo cafajeste do Claudio Trovão, meu parceiro de palco e farras juvenis. Ele sempre se beneficiou do séquito feminino que me rodeava, para chafurdar em suas aventuras amorosas, acompanhado de seu violão encantatório. O danado usava bem seu instrumento de cordas.

Só que nem todo encontro casual é encarado como uma simples troca de roupas no camarim coletivo de um teatro. E nem toda mulher aceita que uma noite de sexo possa ser apenas um ímã irracional entre peles, bocas e genitais superexcitados. Depois que quase fui emasculado com uma espátula por Rosana Black, uma das atrizes substitutas do elenco feminino de Hair, controlei meus ímpetos hormonais. Descobri que estava na hora de abandonar a tardia adolescência e me tornar um homem de respeito. A garota psicopata se desligou voluntariamente do espetáculo. Preferia ver o capeta a ter que dividir um dueto comigo. O quase escândalo foi abafado. Se odiava as manchetes sensacionalistas, que meus pais garimpavam nos jornais, para divulgar seus constantes papéis na telona, imagine fazer qualquer referência as minhas partes íntimas nas revistas de fofoca.

Praticamente não tive um arranhão. Só um baita susto que faz até o pior dos terroristas repensar seu extremismo religioso.Assumi, então, uma abstinência quase monástica e principalmente distância de atrizes que tivessem o perfil psicológico da personagem de Glenn Close em Atração Fatal. Virei quase um santo. Trovão começou a achar que, no final da temporada, eu entraria para um mosteiro.

Tia Marciana, a bailarina cadeirante mais abusada e enxerida do planeta, garantia que eu estava em metamorfose para a melhor fase da minha existência. Mas que para atravessá-la, eu precisava de uma mulher especial que me ajudasse a emergir da armadilha que a caixa preta de meu inconsciente preparava-me nos próximos anos. Aquela matrona rabugenta sempre foi meio bruxa, meio maga, meio mala com suas profecias e mania de apontar-me como messias de uma missão grandiosa.

Só que titia era persistente. Enchia meu celular de torpedos. Lotava minha caixa eletrônica com mensagens de que um ciclone de saias mudaria o norte de meu universo. E os polos da Terra quase se inverteram no dia em que conheci Cássia. A morena ficou presa comigo e Trovão no elevador do Teatro Montenegro, horas antes da audição para o musical Rádio Pirata.

Foi implicância, faísca, ódio e amor à primeira patada. Cláudio sacou no ato que, naquele cubículo de menos de dois metros quadrados, ocorria um novo Big Bang, um encontro definitivo entre dois mundos complementares, duas almas quase siamesas. Eu me recusava a aceitar a petulância daquela mulher, que botava banca de suprassumo da técnica corporal e não aceitou meu fora logo que adivinhei sua aproximação repleta de terceiras intenções. Ela praguejava que, em menos de dois minutos, eu consegui me tornar a maior decepção de sua vida, que destruí a idealização do cara gente fina que a mídia vendia. Caíque Monteiro agora era um embuste para ela. Valia menos que um tablete de margarina com prazo de validade expirada nas gôndolas do mercado. A garota amaldiçoava o tempo que perdera, corujando minha presença cativa nos quadros de dança com famosos. Garantia que iria apagar todos meus vídeos, fazer uma fogueira com minhas fotos, principalmente com a toalha encharcada de suor que surrupiou do camarim numa de minhas apresentações.Meu Deus! Como ela era porca! Guardar um pano fedido como talismã, sei lá o quê, era algo quase patológico.

A morena ainda teve a coragem de dizer que, olhando bem de perto, eu era um nanico e meus um metro e oitenta eram mágica das plataformas de meus sapatos.

Mas em compensação, ela odiou ouvir que renegava suas raízes afro com aquela escova progressiva que a fazia lembrar um collie bronzeado. Ficou mais furiosa quando a acusei do hábito de repetir 'tipo assim' dez vezes numa frase e de ser histérica. Num golpe desesperado, ela qualificou meu beijo de medonho.

Aquilo já era delírio. Nos cinco minutos encarcerados no elevador, a maior intimidade que tivemos foi xingar a mãe um do outro. E como ninguém pode julgar algo sem conhecimento de causa, arranquei-lhe um beijo caprichado para destruir sua tese. Ela ficou bamba. Eu sem ar. Seus olhos brilhavam estranhamente numa alegria incontida. Eu sentia como se tivessem me conectado numa tomada de 220 volts. Com aquele ar cínico que trouxe de berço, Trovão lamentou não ter um manto da invisibilidade para que ficássemos maisà vontade.

Depois desse dia, ela não saiu da minha cola. Até porque a criatura passou no teste para o musical e seria eventualmente minha parceira de cena. Os diretores acharam que tínhamos a química perfeita para um dos casais mais quentes do espetáculo. Lógico, desde que a titular do papel não pegasse o vírus da H1N1 ou tivesse um desarranjo. A chatinha era a regra dois da protagonista.E encontrou um meio de dividir o mesmo metro quadrado comigo todos os dias...pelo menos durante os ensaios.Ela praticamente virou minha sombra.

Porém, eu não me dobrava àquela morena, por mais que ela me tentasse. E agora a criatura estava cumprindo sua cota diária de voyeurismo, espionando-me na gravação do cddo espetáculo, como quem não quer nada. Só que ela queria um algo mais. Uma carona. Cássia integrava o corpo de baile do flashmob que faríamos à tarde no Parque do Ibirapuera para divulgar o Rádio Pirata. Uma tarde ensolarada onde ciclistas, namorados e famílias inteiras desfrutavam daquela ilha de verde perdida na cinzenta metrópole das grandes especulações financeiras.Alguns de nós passaríamos por um grupo de alunos de ioga, tapetes de EVA debaixo do braço, outros por skatistas, maratonistas e, na hora H,transformaríamos o espaço num grande palco sob meu comando e da diva Blanca Fischer.

Só não esperava que a estrela principal do espetáculo fosse derrubada pelo mosquitinho da dengue e estivesse internada numa clínica na zona norte paulistana. Era o grande momento de Cássia Sol, que já sabia, desde as primeiras horas da manhã, do afastamento da colega e só contou-me da novidade minutos antes do evento. Pior que nem tinha como reclamar. Ela dava conta do recado. E estaria comigo numa proximidade física perigosa.Só que era profissional o suficiente para não sucumbir. Pelo menos era no que eu acreditava.

Quando os acordes de September da banda Earth,Wind&Fire foram executados pelos músicos disfarçados na multidão, eu puxei o solo do flashmob. Nossos corpos entraram numa sinergia indescritível. Mais do que passos sincronizados e o molejo arrebatador, parecíamos entrar numa sintonia fina, nunca antes experimentada. Seus braços percorrendo meu pescoço, minha mãos erguendo-a no ar, as brincadeiras coreográficas, misturando jazz, charme, rock. Tudo aquilo parecia derrubar as últimas fortalezas que erigi contra Cássia, e nos unir definitivamente.Os frequentadores do parque aplaudiam, filmavam-nos com seus tablets,smarts... Era um marco na publicidade dos musicais em São Paulo. A mulher que seguraria minha barra, quando a ardilosa fatalidade me abatesse como um terremoto daqui a alguns meses, ancorava em mim.

Foi tudo muito rápido. Sob as ferragens de um Opel Corsa 2007, encontrei os corpos mutilados e sem viço de meus pais, após a perseguição que eles viveram com os paparazzi na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Quase apaguei ao reconhecer o que restava deles naqueles destroços.

Um ano depois, abandonei o mundo dos musicais. Dizem que o trauma da morte dos velhos adormeceu o bichinho da dança que corroía meu íntimo, arrancou meu tesão de riscar os palcos com meus pés frenéticos. Dizem... toda mentira confortável repetida milhares de vezes se torna uma sagrada verdade. Só que, por mais dolorida que tenha sido aquela tragédia, eu sabia que tinha raízes firmes como um jequitibá para não envergar facilmente diante das piores tempestades. Algo maior e inconscientemente inquietante eclodiu em mim como um gatilho de pólvora, depois daquele acidente de meus pais e fez-me cortar absolutamente qualquer laço com a dança, criar uma muralha que me encastelava num mundo do mais silencioso e completo anonimato.

 Casei-me com Cássia em poucas semanas. Mudamo-nos para o Rio, longe de todos contatos que eu tinha com o universo dos musicais.E para espanto de todos, depois de meses torrando minha poupança com despesas domésticas e enfiando as fuças nos livros, passei para o cargo de um disputadíssimo concurso público.Era agora analista de seguro social. As malhas de ensaio, os registros dos anos de fama e os calçados para sapateado foram enterrados numa enorme caixa de papelão no porão de nosso sobrado no Humaitá. Por mais que uma comichão me fizesse, vez por outra, rabiscar tímidos passos na solidão sigilosa do piso branco no chuveiro, por mais que fosse ainda reconhecido pelos cativos admiradores dos musicais na fila de uma confeitaria, eu estava em outra. Precisava estar. Nem sei dizer bem o porquê. A única certeza era que, sob as empoeiradas caixas de guardados do porão, meus pés frenéticos estavam definitivamente aposentados. Ou pensava que estavam... porque naquela manhã de sábado, em que um dilúvio caiu sobre a cidade, uma estranha coceira voltou a roçar a epiderme de meus dedões e os ecos do passado e os clamores do presente se confundiram numa mesma dimensão, convidando-me a ressuscitar talentos que adormeciam sob felpudas meias de algodão.

 

O fragmento do romance Sua vida pode ser um musical é de minha autoria e pode ser adquirido por este link

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ou pelo email giovanessantos@ig.com.br ou pelo blog

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