Fragmento do romance PAPO DE AMIGO do autor Giovane da Silva Santos

Fragmento do romance PAPO DE AMIGO do autor Giovane da Silva Santos

Fragmento do romance ‘PAPO DE AMIGO’

 

Partituras ambulantes de carne e osso saracoteando pelas veredas sinuosas das metrópoles. Só Sabão para tirar do baú essa pérola teórica, que criei nas rodinhas de conversa na Escola de Música e que virou tema de meu trabalho de conclusão de curso.

As pessoas são como frascos musicais de estilos variados. Dependendo da frequência podem vibrar em harmonia conosco ou provocar um ruído ensurdecedor. É como se cada indivíduo tivesse uma trilha sonora interna, que regesse seu comportamento, seu jeito de ser e estar no mundo. Suingada como um reggae nos mais descolados, tempestivas nos de compasso heavy metal, delicadas naqueles de natureza clássica, quase valsas personificadas. Eu era uma partitura complexa, cheia de páginas que transitavam do pop ao operístico de uma Maria Callas trágica. Desde que o universo resolveu apresentar-me de corpo inteiro - antes só ouvira sua voz como operadora de telemarketing-  a mulher que rufaria os tambores de meu coração, naquela plataforma do metrô, a danada captou esse detalhe de minha psique. Por isso, Mônica adicionava, todos os dias, no meu mp3, o hit que sintetizava sua leitura de meu estado de ânimo matinal. Sempre quis retribuir o gesto, mas nunca encontrei a balada que dissesse: essa é você, meu bem! Ela era meio camaleoa. Gostava de mudar constantemente de ares, conhecer novas filosofias, praticar yoga, terapias alternativas, trabalhos voluntários com idosos e crianças especiais. Tinha um quê da figura feminina de Charme do Mundo da Marina, mas quando demonstrava seu afeto por mim era a garota apaixonada de How Deep Is Your Love do Bee Gees.

Ao invés de amor à primeira vista, tivemos algo parecido com paixão ao primeiro telefonema. Ela trabalhava como operadora de telemarketing. Invadia nossas intimidades com aquelas pesquisas insuportáveis, que sempre terminavam com a oferta de algum produto que você nunca cogitou comprar, mas lhe é apresentado como a salvação de sua vida medíocre. Só que, em vez de provocar uma queda na linha ou soltar frases debochadas como 'Você ligou para Açougue Boi Manso! Deixe recado após a última ruminada!', senti-me sequestrado por aquela voz melódica, que não obteve o número de meu cartão de crédito. E sim um convite cheio de intenções para aplaudir o nascer do sol, depois que abrisse o show para a Blitz no Circo Voador.

Nossa sintonia musical era praticamente perfeita. Frascos musicais que desafinavam por pouca coisa. A mesma energia rolava com minha mãe, uma discografia ambulante da Enya. Sempre recheada de palavras espiritualizadas e conselhos doces que sacava do bolso como aquelas tias, que trazem delícias gastronômicas depois de meses sem visita.

Os ruídos gralhados e desarmônicos surgiam com a ala masculina da família. Sabe aquele velho hit do Herva Doce, 'Moreno alto, bonito e sensual. Talvez eu seja a solução de seus problemas...'. Jairo era a encarnação do amante profissional que estourou nas FMs dos anos 80. Sempre sem camisa e de shortinho, exibia os músculos, como se precisasse afirmar que sua qualidade principal não era a inteligência. Era o preferido do pai, sua versão teen e o cara que fez o show dos festejos de minha formatura no Gaia tornar-se um desastre, depois do acidente em que se meteu deliberadamente.

Já o velho era um techno hit de academia, sempre disposto a correr mais cinco quilômetros, mesmo depois de já ter percorrido quinze. Sua jovialidade o fazia aparentar no máximo trinta e oito anos, apesar de já ter entrado na casa dos cinquenta faz tempo. Tudo devido ao zelo com a forma física e aos cremes faciais. Tinha uma percepção rítmica, que assustava qualquer músico, mas uma coleção de pretensas verdades que estendera um Grand Canyon entre nós.

E era esse vasto abismo que eu enfrentava agora, diante de um prato de nhoque dos Deuses. A tevê ligada exibia um talk-show, onde o roteirista Alex Machado falava de seu projeto de uma série sobre Crianças Cristais. Sorte que minha mãe só usa talheres de metal em dias festivos.

"Se tivesse economizado dinheiro pra um quartinho de motel não teria que aturar essa minha versão defeituosa. Mas papai gosta de aventuras perigosas. Picardias no banco de trás do fusquinha. Só que não estou destrambelhado e vi sim o maluco do capuz azul atravessar a Rio Branco e dar lugar a indigente pirada que me abordou como se fosse uma profetisa".

"E ela disse que vai estourar nas paradas de sucesso, tocando sua guitarra na praça, esperando moedinhas do céu?! Eu tenho ainda uma caixa daquele seu cd independente que encalhou. Já pensei até em dar de brinde pra quem levar três quilos de pepinos ou cinco caixas de frutas na barraca".

"Se rolar piadinha envolvendo minha música e troféu abacaxi, levanto e não volto mais...".

"Sabe que eu já estava sentindo falta dessas pérolas, Seu Umberto". Sabão conseguia ser chato quando queria. "Esse clima atiça o Pavãozinho, deixa o danado criativo. Ainda mais agora que vamos apostar todas as fichas nesse concurso da tevê, ele precisa estar tinindo. E nada melhor do que seus esculachos para desligar essa cabeça dura de paranoias com o Highlander de capuz azul, mendigas videntes! Ele precisa de problemas reais. Lembra que só deu uma trégua na sandice de ser perseguido pelo Gasparzinho de moletom, quando ajudou a fazer essa belezinha superar o mudismo?".

"Eu não era muda, Sabão". Leila já protestava antes de repetirem aquela estória.

"Mas parecia um bichinho indefeso. Tinha um bloqueio, uma timidez irracional, que te fazia falar com as pessoas, só cantando trechos de música, depois do que sofreu na mão daqueles safados. Tinha uma vozinha de rouxinol e os olhos arregalados, quando me viu na porta da sapataria do meu pai. Depois me seguiu até o campinho de pelada. Ninguém entendeu nada. Acharam até que eu tinha abusado de você. Todo mundo queria saber quem era a desparafusada. E foi a Mônica e o Pavãozinho que descobriram seu jeito exótico de se comunicar e te encaminharam àquela terapia que te fez sair daquele poço sem fundo... desabrochar, casar comigo e termos nossas duas princesas lindas".

"Agora eu falo até demais e vamos mudar esse disco que prefiro esquecer essa fase negra.". Leila limpava uma lágrima de emoção incontida sempre que Sabão reiterava seu amor por ela." O Bryan mandou lembranças. Foi pra Austrália com nossa filha e falou que vai comprar um canguru".

"Que coisa útil! É pra botar na mesinha de centro da sala? Canguru, né?!". Sabão nunca engoliu aquele amor da filha pela versão ianque do Menino do Rio. "Isso é o que dá a pessoa não ter problemas reais como os que fazem o Pavão fermentar a sua arte! Nosso astro aqui age sobre pressão".

"Desempregado agora ele vai ter uma overdose deles. Quem sabe ele até não subloca o Galpão pra algum culto bem histérico. Pelo menos aí acontece um milagre e ele se toca que passou da hora de me dar um neto. Afinal daqui a pouco a Mônica entra no clube dos enta, o útero se aposenta... Isso se ela não procurar algum voluntário mais empenhado... Tipo o chefe de cozinha das manhãs da mulherada. Ele já teve cinco filhos, cada um com uma mulher diferente. Fazer o sexto na sua esposa seria moleza. Até porque ela sabe que o bonito aí aboliu a palavra paternidade do seu caderninho, apesar de não se dar por vencida como eu que acredito no seu instinto de perpetuação da espécie".

"Você transita de um assunto para outro como um avião sem escalas. Eu vou repetir pela milionésima vez, Seu Umberto. A missão de propagar seus genes é todinha do Jairo". Apesar daquele duelo de farpas, meu garfo não repousava na mesa. "Além do mais é humanamente impossível dividir o espaço com alguém que suje as fraldas e chore como sirene. Deixo a tarefa pro maninho gostosão. Aliás, do jeito que a mulherada cai em cima dele, logo vai ter norinha espalhada por todo bairro".

"Você adora implicar com seu irmão, hein!"

"A vítima e o algoz nessa frase estão trocados. Já está precisando de óculos?".

"O Jairo sempre exigiu atenção especial. Era hiperativo, teve sempre aquele déficit de concentração. Já você era mais solto no mundo, mais safo! Se virava por conta própria".

"Eu descobri isso na pele na noite do show dos formandos de minha turma. O Tarzan do subúrbio quase quebrou a coluna do outro lado da cidade e eu fiquei invisível pra você durante dias! Sem contar com a chance profissional que perdi com aquele agente por conta do surto que tive...". Aquele ressentimento brotava de mim com uma naturalidade incontrolável.

"Isso tudo é pra me castigar, confessa!". Meu pai não desistia.

"Do que o senhor está falando?!". Já cansava daquela perturbação.

"De sua determinação em me negar um neto por conta daquele episódio de anos atrás".

"Eu fui acusado do acidente do seu protegido no dia mais importante da minha vida. Virei um fantasma durante semanas. Eu chamaria isso de marco zero na minha história!".

"Eu queria que algo grandioso te sacudisse de ponta a cabeça!". As palavras de Seu Umberto se tornaram tão impactantes quanto as da mendiga profetisa e arrepiaram-me os pelos do corpo. "Por mais absurdo que possa ser, eu daria tudo pra que o filho, que ainda não teve, aparecesse na tua frente pra ter mostrar que um artista só se torna completo, quando tem todos os canais abertos, inclusive o da paternidade. Aí descobriria que há coisas tão nobres quanto ser o menestrel da música pop".

"Desconjuro! Endoideceu! Ó!". Bati três vezes na mesa.

 

 

 

 

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