Minha choça - por Anchieta Antunes

Minha choça - por Anchieta Antunes

MINHA     CHOÇA

 

            Era minha, e mais ainda porque eu a construí sozinho, sem ajuda. Claro! Contei com o beneplácito do barro à margem do rio que circunda minha pequena propriedade. Foram dois meses de luta; pela manhã trabalhava na lavoura, pois tinha que prover meu sustente, e à tarde, geralmente mais quentes, levantava minha choupana.

            Primeiros móveis: caixotes vazios que ganhei dos amigos na feira do sábado. Uma quartinha de barro, e o copo era uma lata vazia de leite moça. Um pote grande cheio com água do rio, coada três vezes, para purificar. Muito tempo depois comecei a ferver a água no fogo de lenha para, depois de fria, botar no pote. Banho? No rio, ora! Onde mais? Águas correntes lavam até o que a gente não vê!

            Minha cama: um primor de desenho artesanal. Primeiro tive que providenciar uma foice, umas embiras de bananeira e ganhar o mato à procura de vara verde. Cortei mais ou menos umas trinta varas, amarrei com as embiras, trouxe pra casa e botei pra secar no oitão da “casa”. Um mês depois, com um sol de rachar, as varas estavam secas de estralar, prontas para armarem minha cama. Passei um domingo inteiro fabricando minha cama de casal. É claro que eu era solteiro, mas estava pronto para casar, só faltava encontrar a morena dengosa.

            A lavoura estava uma maravilha e no próximo fim de semana teria minha primeira féria na feira da cidade. O que eu plantava? Pra que você quer saber, vai querer comprar? Vai nada, leitor não compra, leitor lê. A minha sorte, que eu ajudei a ter, foi que comprei um sitio na beira do rio. Nome do rio: “RIO DE ÁGUAS CLARAS E ABUNDANTES”.

–Cara, que conversa é esta? Isto não é nome de rio! Rio de águas claras e abundantes, é mais apropriado para nome de romance.

–Meu amigo, o rio passa nas minhas terras, molha minha lavoura, lava minha  roupa, limpa meu corpo, mata minha sede, será que não tenho o direito de colocar o nome que eu quiser. O Governo que se dê ao trabalho de colocar o nome que escolher nos seus tomos de geografia, eu não quero nem saber qual é! A única coisa que o Governo dá pra gente é nome de rio, de ruas e cidades, o resto ele toma tudo. Toma o imposto, um pedaço do salário, toma o tempo do pobre nas filas, toma a dignidade e o amor próprio. Orgulho? Nem sei mais o que é isto!

Deixa o governo pra lá antes que ele venha tomar minha lavoura pra dar pros índios. O colchão da minha cama, eu mesmo fiz com capim e trapos emendados. Ficou macio que só! Durmo a noite toda e só acordo quando o sol vem bater na minha janela. Só quero saber se quando eu tiver minha morena do lado, se ele vem se intrometer na nossa vida. Espero que não. Boto logo três tabuas na janela para não deixar que ele entre. Foguinho este atrevido e enxerido. A casa é minha, a cama é minha, a mulher é minha, ou melhor,  somos um do outro, e de manhã cedo não convido ninguém para entrar. Ainda estou com ressaca de amor, cheirando a safadeza. Mas isso é só quando me casar. Quando será?

            A minha trigueira eu a moldei em meus sonhos noturnos e solitários, olhando a lua, escutando o cri, cri do grilo, e ouvindo a musica do rio molhando o chão, e esculpindo rochas.  Era formosa e faceira, cabelos longos e brilhando com cheiro de leite de coco. Um riso safado brincando no seu rosto comprido. Os olhos cintilavam mais que a estrela Dalva. Cintura fina e pernas compridas balançando os quadris, convidando para a vida. Tudo isto eu via nos meus sonhos, ficava encantado e ansioso esperando o dia em que ela batesse na minha porta. Ia esperar muito, quer milagre, é? Vá atrás não, pra ver no que dá! Vai morrer sozinho, pobre coitado.

            Uma noite de dezembro, na quermesse da Matriz eu a vi, primeiro de longe, depois fui me aproximando com um receio tão grande que me fazia tremer todinho. Parecia que eu era todo feito de paixão, de arrebatamento, de amor.

–Aquela é a mãe de meus filhos! Pensava comigo mesmo. Tô ficando doido, é? Não sei nem o nome da menina e na minha cabeça ela já é mãe! Arre! Calma meu bichinho, ela tem pai e mãe, né tão fácil assim não!

            Fui chegando pertinho, bem devagarzinho como cão caçador, sem fazer barulho pra não levantar a lebre. De pertinho ela era mais bonita que Nossa Senhora, fiquei doidinho, queria logo ela.

–Como é seu nome meu amor, quer se casar comigo? Foi a primeira coisa que disse pra ela: não é coisa de gente maluca?

Tá ficando doido moço, eu nem lhe conheço. Meu pai ta logo ali sentado naquela mesa, quer que eu chame ele? Aí sim, o senhor vai gostar muito. Olha só a “lambedeira” que ele tem na cintura!

            Encarei o pai, a mãe e a lambedeira e ganhei a noite, saí vitorioso, conheci, como manda o figurino, aquela menina com quem eu sonhei tantas noites. Solange da Silva. É o nome dela, também é o nome de minha felicidade.

            Três meses depois só escutei o padre quando ele disse:

–...e sejam felizes para sempre, pode beijar a noiva. Já dei tanto beijo na minha Sol, que não tem aritmética que consiga contar. Nos primeiros tempos ela nem precisava ir pra beira do rio pra lavar roupa; que roupa? A gente não usava! Pra que usar roupa se somos só nós dois? O vizinho mais perto fica pelo menos a dois quilômetros de distancia, e não vem nunca nos visitar, não tem tempo, é um trabalhador como todos nós, da lavoura.

            Quatro anos depois tínhamos três barrigudinhos rondando nossos pés. Todo mundo nu, os meninos, nós não, temos que dar o bom exemplo. Não sei que bom exemplo é este se Deus nos fez nus, assim como Adão e Eva! A maldade ta na cabeça do homem. Criança não peca, nem sabe o que é o pecado. Vida no campo não tem pecado porque não tem bebida, não tem a mulher do próximo, nem do distante, a não ser a sua mesmo. Não tem mexerico, nem inveja, tem muito é cansaço e  bicho de pé. No fim do dia, um banho, uma sopa e uma cama, às vezes a cama serve até pra dormir.

            Progredi muito na vida. Engraçado! Quando a gente fala “progredi” todo mundo já sabe que estamos falando de dinheiro, quando podia ser tanta coisa diferente, como ganho de cultura, conhecimentos, viagens e tanta coisa mais. Mas o homem é bichinho nojento, só pensa em grana. Pois é, já comprei quatro sítios lindeiros com o meu e agora estou criando gado alem da lavoura. Meu sogro me ajudou muito. Ele já criava gado e me ensinou o oficio. Criar gado trás um excelente rendimento, que o diga meu amigo Roberto.

            O fato meus amigos é que hoje temos uma senhora casa, cinco filhos, cada um na sua cama “comprada em loja”, a nossa também, temos nossa camioneta, os meninos e meninas estudam em bons colégios e temos uma respeitável conta bancaria. Somos completos e felizes para sempre, como disse o padre lá atrás, lembram?

            Minha amiga Cirse, sempre diz que todo conto tem que ter uma tragédia no começo, no meio ou no fim, mas como este conto é meu, não tem nem vai ter tragédia nenhuma, de tragédia basta nossa vida atribulada (ou será que “complicada” fica melhor?) nas grandes metrópoles, com filas, engarrafamento, assaltos e alagamentos. Quer mais tragédia? Pede uma ajudinha ao capeta, quem sabe!     Será?

 

Anchieta Antunes

Gravatá – 04/01/14.

 

 

 

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