Portalegre: um paraíso desperdiçado - por Lucia Gonçalves

 

Portalegre: um paraíso desperdiçado

 

Com a desculpa de ter de ir comprar uma garrafinha “Botica” de licor de tangerina e pinhão, que só em pensar no sabor do líquido docemente amarelo-reluzente fico com a boca feita em água, dou por mim a estacionar o carro no Largo do Palácio Amarelo.

Enquanto faço a manobra sou assaltada, como sempre, pela lamentação de ver tão bela e rica construção votada ao abandono. Ver assim reduzida a nobre arquitectura burguesa a um mal arrumado armazém mirra-me a alma e para me reconfortar dialogo com a minha imaginação. “Mal sabem os portalegrenses do enredo que já corre nas minhas páginas dentro daquele palácio branco e amarelo…”.

Absorvida pelas ideias que saltam da fértil veia romântica digiro-me contrariada para o parquímetro sempre maldizendo a inércia de quem ainda não conseguiu libertar a zona histórica/comercial da cidade de Portalegre daquelas máquinas infernais comedoras de moedas e afugentadoras de clientela.

Dobro a esquina da Igreja da Misericórdia, actual Escola de Artes do Norte Alentejano e entristeço-me por ver vazias as escadarias, que há menos de meia dúzia de anos (nem tanto), eram o ponto de encontro de dezenas de jovens que ali se deslocavam para alimentarem ou aperfeiçoarem o seu gosto pela música. Os jovens com o seu frenesim que lhe é saudavelmente habitual davam alma àquela zona da urbe com suas conversas, risadas e acordes musicais mais ou menos afinados. “Até a arte nos sugam por uma palheta tão singela que, encantados que andamos por ainda conseguirmos ter a cabeça fora de água, não nos apercebemos que o corpo submerso está mirrado até ao tutano”.

Dou meia dúzia de passos e todas as ideias românticas que pudessem brotar ao pisar a calçada portuguesa que serpenteia suavemente rua a baixo desvanecem-se pela ausência de transeuntes e pelo número de portas fechadas que em tempos, não muito idos, eram a entrada de uma e outra loja. Agora amontoa-se o pó nas vitrines.

Umas portas mais a baixo entro num espaço comercial mais uma vez reinventado. Agora numa típica mercearia, onde uma simpática senhora me faz uma apresentação dos produtos que tem à venda, demorando-se orgulhosamente naqueles que são o fruto do empenho de uns tantos portalegrenses que optam (numa luta diária) por oferecer à terra natal todo o seu talento. Finjo desconhecer os artigos pois deleito-me com as palavras sábias da lojista que de forma empenhada defende o princípio de que o que é “portalegrense é BOM.” Retribuo sorrisos e elogios aos nossos produtos regionais que tanto sucesso têm além fronteiras alentejanas. Acabo por adquirir não só a “Botica” como também umas deliciosas amêndoas de Portalegre, cujo desfazer lento do sabor a chocolate se mistura graciosamente com o estalar da amêndoa torrada.

Como ainda me sobra o meu bem mais valioso, o tempo, decido continuar a descer a Rua do Comércio, que infelizmente pouco jus faz ao nome. Mudamente congratulo todos os que corajosamente insistem em manterem o comércio aberto daquela rua tão pouco movimentada e que periodicamente se desdobram em eventos para que os portalegrenses a visitem e valorizem. Penitenciou-me pelo mesmo pecado.

Já perto das Portas da Devesa, ali mesmo, sobre as pedras centenárias tenho a ideia de fazer o caminho de volta pela Rua 1º de Maio.

A uns tantos passos olho para a recente construção que ocupa o espaço da defunta Moagem de Portalegre e lembro-me das vezes que ali fora ao final de tarde comprar a tão saborosa boleima ou as línguas de sogra. A saudade invade-me. Questiono as opções urbanísticas que vão esvaziando a cidade do seu património edificado que a tornavam ela própria e não uma cópia de outras e tantas outras cidades. “Não será a individualidade dos locais um atrativo turístico?”

Quando as construções urbanas deixam a descoberto a serra da Penha e a sua cruz altaneira supostamente protectora dos portalegrenses, os olhos descem até à brancura da ermida e vá-se lá saber porquê recordo os versos de José Régio na Toada a Portalegre “ Em Portalegre, cidade do Alto Alentejo, cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros…”

Vou caminhando, com os olhos postos na imensidão da paisagem que se estende para lá do IC13. Pela enésima vez apaixono-me por tudo o que a vista e a memória conseguem alcançar. O coração bate forte por mais uma vez se encantar com a imensidão do azul ciano, com a variedade de tons de verde, com os amarelos das giestas, com a transparência das poças de água que se juntaram com as últimas chuvas e que aqui e ali cintilam por entre o arvoredo e as quintas que se estendem para lá da Fonte dos Fornos. Por instantes viro às costas à paisagem tentando focar as torres da Igreja da Sé à procura das tão emblemáticas cegonhas e do som oco do bater dos bicos, o matraquear.

 Retomo a minha caminhada. Como uma adolescente que reconhece o primeiro grande amor (pois nessa idade todos os amores são o primeiro e grandes), atravesso a estrada, para de costas para a estátua do eterno semeador de plantas ou de sonhos, emocionada por me deixar guiar pelas cores, pelos aromas e pelos sons humidamente doces da primavera. Ergo os olhos como que agradecendo à providência divina a graça de ter dotado esta terra com uma luminosidade inigualável.

Mesmo ali à minha frente o sol vai aos poucos despedindo-se da terra deixando no arco do horizonte um rasto vermelho alaranjado. As nuvens cinza escuro tornam a paisagem ainda mais romântica. Inspiro e expiro, melancolicamente apaixonada.

E apesar da minha fraca devoção pergunto a Deus: “O que fazer para todos convencer que este é o melhor lugar do mundo para se viver? Com este êxodo forçado dos fertilmente jovens quem ficará, depois de a tormenta passar, para rejuvenescer e encher de vida a nossa terra? Pode ser… pode ser… que depois da tempestade venha a abonança!”

Com desalento encolho os ombros. Não em sinal de resignação. Mas por saber que temos pela frente um hercúleo desafio.

Lúcia Papafina (abril de 2014)

 

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