Precisamos de muitas histórias e um teto todo nosso - por Patrícia Dantas

Precisamos de muitas histórias e um teto todo nosso

 

Quando peguei o livro de capa rosa, com uma ambientação exata e aconchegante para quem deseja ‘Um teto todo seu’ para escrever em paz e concentrado dentro das entranhas que sabem falar mais que sua própria boca viva e carnuda, decidi me calar até o chegar ao final do livro e ouvir - a escuta em silêncio - o que a escritora tão lúcida tinha a me dizer. Foi ela, Virgínia Woolf, a mulher complexa, profundamente lírica e de um estilo único, que escreveu um ensaio refinadíssimo e com mais de cem páginas, a partir de uma uma série de escritos para suas palestras no início do século passado, no Newnham College e Girton College, escolas para mulheres na Universidade de Cambridge.

 

Rapidamente, uma frase dela me fez arregalar os olhos: “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção. ” Pensei realmente sobre a possibilidade da liberdade financeira que permite viagens, experiências, ócio (ócio criativo, não me interprete mal!). É preciso ficarmos aqui distantes dos preconceitos que cegam e tiram conclusões precipitadas, pois esta liberdade é hoje desejada por qualquer pessoa que se aventure a escrever e pensa nas possibilidades de olhar outros espaços dentro de mundos tão próximos e ao mesmo tempo distantes. Aqui estamos no tempo em que Woolf pensava e falava para um público específico, mas sua voz alcançava lugares inimagináveis. Sua escrita observadora ganhava força no tom e instigava inquietações.

 

Woolf buscava expor as questões dos sexos em um tablado orgânico e literário; ela fazia o jogo da compreensão das épocas e atitudes, espremia do tecido social o que fora construído até ali da vida das escritoras e, ainda que encarasse controvérsias e posições contrárias às suas ideias, não se intimidava. Ela precisava encontrar as condições necessárias e favoráveis para a mulher escrever a ficção moderna ou outros escritos que acalentassem o corpo e a alma naquele momento em que a caneta corria desregradamente pelo papel (quando escrevia, ela se referia à pena e ao tinteiro). Woolf tinha muito a dizer e precisava de escutas atentas. Além disso, sabia toda a sorte que lhe aguardava: “Aquele laço sobre o qual falei, mulheres e ficção, a necessidade de chegar a uma conclusão em um assunto que evoca toda sorte de preconceitos e paixões, me fez curvar a cabeça ao chão. ” E ela não temeu, embora soubesse que não chegaria a uma conclusão.

 

Seria possível recriar um Homero, um Virgílio, um Shakespeare, um Tennyson? Havia verdades indestrutíveis naqueles poemas incansáveis e imorríveis, que atravessariam todos os tempos? Seriam eles eternos, a configuração do organismo que não conhecerá a morte? Seria possível a existência de outro ser camuflado (a irmã poeta de Shakespeare que ‘nunca escreveu uma linha’, criando e vivendo as peças por ele?, sugere Woolf). Não, porque eles marcaram seus tempos, como indivíduos, conforme suas dores, solidões, alegrias e viram insanidades em suas faces que atravessavam também o outro que estava em suas tramas.

 

A literatura também consegue perscrutar e encontrar vozes femininas, ainda que naqueles momentos, caladas no trato social, destilavam suas ‘dores, solidões e alegrias’ com afinco, criavam suas ficções através das realidades dos seus sonhos de liberdade e novos ares. Elas, as mulheres escritoras de quem Woolf fala, desejavam contar muitas histórias, queriam existir além daquele espaço confinado a um ciclo sem grandes novidades. Jane Austen, Emily e Charlotte Brontë, George Eliot, Fanny Burney são algumas dessas escritoras que saem dos seus limites e trazem novas possibilidades diante do romance e da ficção. Ninguém disse a elas que escrever e ultrapassar os limites do pensamento seria fácil: suas histórias enfrentariam críticas que as colocariam aos pés de uma subliteratura e alcançariam olhares enviesados de desagrado. E a quem agradar? quem alcançar? como chegar aos ouvidos de alguém e, com voz agradável, narrar momentos e tensões tão comuns à vida quanto a poesia que chega no momento de algum entendimento do que se passa bem dentro da gente com uma força descomunal?

 

Estão aí, para construir o painel das conquistas na literatura feminina, independente de enquadramentos ou temporalidades que não cabem no processo da expressão pelas palavras, mulheres que significaram suas vidas em traços inesgotáveis, que transitaram entre realidades e ficções, como qualquer pessoa independente de posição religiosa, política ou time de futebol, porque ali existe uma história sempre pronta a ser desvendada e olhada com outros tons de vida. Essa é uma conversa que não encerra jamais, precisamos entender o contexto e a situação em que a escritora Virgínia Woolf fala, seu tempo, seus anseios, suas crenças e angústias por querer ir além diante de uma sociedade que lhe oferecia tão pouco.

 

Hoje, podemos fazer estas mesmas perguntas e continuar buscando esse ‘teto todo nosso’? O contexto mudou e precisamos da mesma oportunidade que todos os escritores e escritoras encontraram e que está ao nosso alcance: existir e ter uma vida real. “Andar entre nós em carne e osso”, nos fala Woolf. E já fechando seu ensaio sem ares de despedidas, fala algo que ficará gravado para sempre na alma dos escritores “[...] se cultivarmos o hábito da liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos; se fugirmos um pouco das salas de visitas e enxergarmos o ser humano não apenas em relação aos outros, mas em relação à realidade, ao céu, às árvores ou a qualquer coisa que possa existir em si mesma [...] se encararmos o fato, porque é um fato, de que não há em quem se apoiar, de que seguimos sozinhas e nossa relação é com o mundo da realidade e não só com o mundo de homens e mulheres, então a oportunidade surgirá.”

 

Será que muita coisa mudou de lá pra cá, acerca esse nosso tempo presente e das nossas histórias? do nosso hoje em relação ao que queremos deixar escrito? Cabe a cada um encontrar o significado das suas mudanças e desvendar essas palavras que chegam tão prosaicas e desavisadas, alcançando os dedos e causando calafrios bem ao fundo da nuca. Pode ser a sua história que está aí, ou a minha, que está aqui desse outro lado.

 

 

 

 

 

 

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