A Batalha de Marias e Severinos
Os caminhos por onde passamos costumam deixar marcas em nós, Pessoa dizia em um de seus poemas que trazia dentro do coração, como num cofre que não se pode fechar de cheio, todos os lugares, todos os portos, todas as paisagens; creio que eu tenha essa mania poética de abduzir lembranças. Algumas me marcam a ferro e fogo, são lembranças que o tempo não costuma apagar. Pois bem, esta história que vou lhes narrar aconteceu há muito tempo, todavia – ainda viva – faz-me recordar de cada detalhe que ficou gravado em minha memória. Irei poupá-los, no entanto, de dor maior, mas creio que irá notá-la nas entrelinhas amargas das linhas que seguem. Elas não seguem como marcha, nem como cortejo; seguem como a vida quer, como deve ser.
Tudo aconteceu quando dezembro se despedia de mais um ano, o calor reinava em todas as regiões brasileiras, especialmente na região nordeste, o que já era previsível. Embora fosse época propícia para férias e um bom mergulho no mar, eu estava longe desse cenário atrativo. Estava realizando um trabalho na pequena cidade de Batalha.
O cenário parecia feito de cinza, de restos de vida adormecidos sobre a terra enferma que perecia sob o ardor do sol infernal. Naquele lugar, a seca era o reflexo vivo da própria morte; e a vida tentava suspirar em meio à poeira cansada de castigar. Uma lágrima, nos olhos sertanejos, era o único vestígio líquido de esperança que resistia ali. A tal da esperança não passava de uma menininha de pés descalços querendo chamar a atenção. Era um lugar reservado àqueles que nasciam com uma ponta de coragem atravessada no peito feito espada, feito flecha. Era um lugar reservado para Marias e Severinos, todos com a mesma feição e destino, que traçam a vida nesta sina de sofrer e comer o pão esmagado pelo próprio diabo.
Eu, que só estava de passagem, não pude deixar de sofrer a dureza que devastava aquela gente crente, de reza adormecida, que vivia dia a dia sobre a agressividade que se acentuava na imponência dos cactos postos em espinhos. Era dor! Oh, se era, minha gente! Dor dessas de castigar e deixar doente. De levar gente nova, que vida não viu ainda não.
A cada canto que eu visitava, mais eu me sentia envergonhada perante a minha lúcida incapacidade de olhar ao redor, de compreender os quintais alheios. E me perguntava e questionava ao Deus do céu: O que faz desse povo corajoso? Oh, Deus, como podem permanecer nesta terra que atravessa e rompe o mínimo de dignidade que o bicho homem deveria ter. O que torna essa gente destemida, com seus sonhos amputados, moradores dessa terra de cores negras como a morte?
Não havia respostas, apenas olhares, tão cansados quanto a própria vida. Havia ali um mistério que eu não conseguiria compreender. Uma tristeza misturada à certeza de uma nova vida. Olhares voltados para o céu, à espera de um milagre que viesse encharcar a terra, o corpo e a alma. Por quantas secas teria passado essa gente? Respostas não mudariam nada, o cenário seria o mesmo: agreste.
Aqueles rostos escondidos pela poeira ainda vivem em minha memória. Sei que muitos deles, aqueles que de sol a sol não puderam suportar, jazem sob pedras escaldantes. Outros já retirantes, em busca de vida nova, que no caminho foram entregues à própria sorte. Sei que a vida tem suas razões, mas não entendo, juro que não, porque tanto sofrimento para a vida daquele povo que cava a terra sem ter o que tirar, e seus mortos enterram sem se lamentar. Choros vencidos pelo fado imposto pela ingratidão da chuva, esta que é avessa aos pobres que a clamam. Vidas anônimas, personagens da minha história, que lidam com a terra, como se fosse a lida de uma batalha, dessas que não se dão por vencida.
A pobre Batalha que não se entregava, ainda vive em minhas reminiscências. Aquele povo feito para a guerra, que empunha a própria vida e não temiam a morte que se multiplicava. Foi naquele lugar de Marias e Severinos, onde o sofrimento ditava as regras, que pedi ao Deus do céu para acabar com tamanha judiação, porque gente boa e humilde merece isso não. Um povo feito de raça que eu ainda desconheço, gente feita de fibra que renasce do improvável chão.
Eliane Reis