A morte silenciosa das horas
O sinal estava fechado, isso me obrigou a desacelerar, justo no momento em que a pressa estava ainda mais arraigada em meus pés e na minha ânsia descontrolada. Queria chegar logo em casa, muito havia por ser feito, tarefas e obrigações me aguardavam antes de fechar as cortinas de mais um dia. Como eu poderia perder tempo, ali, naquele semáforo? Poxa, poderia ter dado sorte e ter conseguido pegá-lo aberto. Se eu tivesse um pouquinho mais rápido.
Indignada e irritada, aumentei o volume do rádio e tentei me distrair com a canção, mas nem isso serviu como analgésico para amenizar a dor que eu havia inventado, essa doença incurável- a pressa agonizante de querer fazer mais, mesmo quando a vida pede calma. A impaciência foi tomando conta de mim como uma doença terminal que congela os nervos, todavia as mãos não paravam sob o volante, movimentos constantes e agitados tomavam conta delas; a boca “bufava” ruídos e lamentações abafadas pelo barulho oco dos carros e do movimento do fim da tarde.
Bem, não adiantaria nada ter um colapso, sozinha, no meio do trânsito, dentro de um carro fechado. Decidi dar uma trégua ao tempo, à vida. Ok, vamos lá! Esperar era a alternativa (isso tudo porque não passaria de uma fração insignificante de tempo).
Resolvi trocar a música sofrida que ecoava em meu silêncio, desliguei o ar e abri os vidros. Incrível: a vida entrou por eles! Fui tomada por uma sensação indescritível, uma alegria menina dançava na chuva e passeava por entre os carros sem o menor pudor, sem se preocupar com o sinal que estava por abrir.
Havia chovido a noite toda, o ar estava fresco e jovial, exalava um cheiro de terra molhada, típico dos meus tempos de criança, tempos em que eu costumava brincar em poças, sem a constante preocupação com as horas. A memória tem certas delicadezas, eu sempre soube disso.
No entanto, uma buzina atrás do meu carro, fez-me despertar, o sinal estava aberto. Engatei a marcha e saí rumo ao meu destino que estava perto. Minha casa ficava a poucos metros daquela avenida, estaria lá em menos de três minutos. Mudei a rota, o percurso não podia seguir seu curso, não naquele momento; quis dar uma chance àquela nova sensação que invadira meu carro sem que o notasse. Segui a marginal até a parte mais alta da cidade e, de lá, pude me refazer com o pôr do sol mais poético que já vi.
Há muito tempo eu não o via assim, a pressa (ainda não consegui descobrir para que) estava me furtando, ela foi me roubando aos poucos, mas o pior: com minha permissão. Fui perdendo, gradativamente, o prazer de ver as coisas simples, de ouvir e sentir a vida que ainda estavam impregnadas em mim, todavia os vidros fechados escondiam. Tudo gratuito, tudo ali, a um passo, bem a minha frente, eu não conseguia enxergar. O tempo morava em minhas mãos, ele era controlado por elas, como os fantoches. Então, eu poderia fazê-los dançar sobre outro ritmo, com outra música, poderia controlar a rebeldia dos episódios acelerados. Não eram, apenas, os vidros que estavam fechados, ainda bem que percebi isso antes de um epitáfio, antes de uma noite que não amanheça. Tomara que, amanhã, o sinal feche, porque os vidros já estarão abertos!