Cumplicidade - por Eliane Reis

Cumplicidade - por Eliane Reis

Cumplicidade 


      Já passava das vinte e três horas e pairava sobre aquele cubículo um silêncio mortificante, quase sepulcral. O calor parecia aumentar conforme as horas passavam, e, aos poucos, as luzes das janelas vizinhas iam se apagando; a escuridão fazia-se cada vez mais insistente nos arredores.
     Nas ruas alguns transeuntes voltavam para suas casas apressados, assombrados pelos sobressaltos certos que vigiavam àquelas ruas, a esta altura tomadas pelo breu. Boêmios fatigados da fúria diurna saíam às ruas, em busca de bares e bocas com a mesma pressa.
     Do 8º andar eu podia observar tudo, ou melhor, algumas coisas já que preferi manter minha onisciência limitada. Várias coisas aconteciam enquanto a cidade parecia repousar. Como já tu sabes (cúmplice das minhas linhas e entrelinhas) a ausência de sonho me perturba e muito! Isso me traz alguns privilégios sofisticados e sutis, como, por exemplo, ver a vida acontecer sobre uma ótica particular e intensa. 
     Os casos e acasos que passaram diante de meus olhos foram deixando certas marcas. As personagens que atuavam diante de minha janela foram as mais estranhas possíveis, ora elas transitavam pela sanidade, ora pela loucura. Personagens cativantes que foram ganhando pseudônimos em minhas histórias, cujo enredo comungava com a realidade de lugares inóspitos. Personagens insólitos e capazes de bagunçar meus conceitos pragmáticos. 
     Mas, voltemos, caro cúmplice, à noite em que meus olhos presenciaram a cena que daria aos meus versos, às minhas crônicas, às minhas memórias, um pouco mais de morbidez, um pouco mais de melancolia. 
     Como era uma hora já tardia, e o movimento estava rareando, pude ver com clareza o que estava acontecendo naquele lugar escuro. Por uns instantes só observei a cena que me fez ficar estática diante de meu próprio temor. 
     Apressada a garota desceu do carro, como quisesse fugir de alguém, todavia estava só. Ela estava vestida com um jeans surrado e uma camiseta azul clara, usava tênis; aparentava uns 30 anos. Ela era esguia, no entanto uma curvatura sobrepujava sua altivez. 
     Ao sair do carro, ela se dirigiu para um banco que ficava perto do lago (cartão-postal daquela praça) e se sentou por alguns instantes. Acho que chorava (mas como já disse, preferi limitar minha onisciência). Nada fora capaz de interromper a inércia daquele corpo que parecia frágil e destemido ao mesmo tempo.
     Devo ter marcado os minutos, mas agora não me recordo, também isso não teve tanta importância - o tempo tem suas perfídias.
     A cena daquela moça, diante do lago fez-me recordar de uma velha poesia portuguesa que descrevia com certa languidez a beleza de uma princesa prisioneira. De fato, parecia que ela havia se tornado a prisioneira de si mesma. Mas são apenas hipóteses.
     A noite, com toda sua ira, passava rapidamente, e as horas iam pouco a pouco alcançando a manhã.
     Tudo parecia perfeito, como um quadro de Pierre-Auguste Renoir, ainda que fosse a melancolia a moldura daquela perfeição. 
     De repente, surgiu outro personagem em meio às escuras ruas, um jovem bonito e alto. Ele foi até a garota, parecia conhecê-la bem.
     Enquanto ela buscava , não sei se em si ou nas águas paradas e frias do lago, respostas; ele aproximou-se dela e tocou-lhe suavemente os ombros. Ao virar-se, ela estremeceu. O medo entorpeceu seus sentidos. O estranho é que tive a impressão de que ele era terno com ela e estava tentando acalmá-la. 
     Contudo ela se esquivava. Algo terrível estava para acontecer. Isso ficou claro, apesar da distância que havia entre nós. 
     Pensei em ligar para alguém, talvez para a polícia e, assim, evitar uma tragédia. Mas o quê eu diria? Por quê? Sem muito a fazer, mantive a distância que já havia se instaurado entre nós desde o começo dessa história. Permaneci no limite da observação restrita, à espera do desfecho dessa narrativa sem precedentes.
     Por um minuto abaixei-me para pegar a xícara de chá sobre a mesa e ao voltar meus olhos para o lago, percebi que aquela bela garota não estava mais lá. A única presença, naquela noite sombria, era do jovem que voltava, talvez para sua casa, como se nada tivesse acontecido. 
     Assim, aquele belo e sedutor lago ganhou, como se fosse presente de deuses, o corpo e alma daquela bela jovem.
 

 

 

 

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