FUI ASSALTADO ONTEM A NOITE
Noite passada um bando de ladrões invadiu a minha casa. Foi horrível. Estávamos todos na cozinha, jantando e conversando, quando a porta veio ao chão e homens portando fuzis e metralhadoras adentraram rapidamente nossa residência. Não deu tempo de fazer absolutamente nada, em segundos estávamos sob a mira das armas. Sentimos muito medo.
Aos tapas e pontapés fomos obrigados a deixar nossa casa. Minha irmã foi arrastada pelos cabelos até a rua. Com minha avó não foi diferente e ela acabou quebrando o braço ao ser jogada na calçada por um dos bandidos. Mas o pior aconteceu com meu pai. Ao ver o que os bandidos faziam com minha família ele tentou resistir. Com uma faca de cozinha que havia escondido sob a camisa, ele avançou sobre um deles. O homem se defendeu e foi cortado apenas superficialmente no braço, mas um de seus comparsas descarregou a metralhadora em meu pai. Tentei impedir, mas também fui atingido por dois disparos. Eu apaguei.
Quando acordei já era dia, o hospital estava lotado. Somente minha irmã estava ao meu lado, aos prantos. Perguntei imediatamente sobre meu pai, mas antes que pudesse acreditar que tudo aquilo não passava de um pesadelo terrível, veio a resposta: ele está morto! E nossa avó também! – Vomitou essas palavras da boca entre soluços desesperados e lágrimas incontidas. Meu pai morto a tiros, minha avó morta por um ataque fulminante do coração. Eu chorei e me debati desesperado, os pontos costurados no meu braço e na minha perna se romperam e o sangue voltou a jorrar. Um médico apressado apareceu do nada, e me sedou com um poderoso calmante na veia. Felizmente eu apaguei de novo.
Quando acordei pela última vez, minha mãe já estava por perto. Não sei quantas horas haviam se passado, mas as lágrimas ainda estavam no rosto de todos. Perguntei-lhe se estava bem, se também havia sido machucada, porém ela não respondeu. Apenas disse que fora à delegacia prestar queixa do acontecido, mas que a delegacia já não existe mais. O lugar se transformou num posto militar estrangeiro. Disse que pediu por explicações à um militar que estava de guarda no local, mas se assustou ao perceber que o militar era justamente o ladrão que havia assassinado meu pai. Ela correu desesperada e voltou ao hospital para refugiados onde eu me encontrava.
Lá uma enfermeira lhe contou, durante uma breve pausa no trabalho, que o nosso país foi dividido. Que um punhado de ricos e poderosos engravatados do estrangeiro resolveu pegar a NOSSA terra e DÁ-LA para outro povo. Minha mãe disse que isso era um absurdo, que ninguém possui o direito de dar aquilo que não lhe pertence. Mas a enfermeira disse que aquele que possui o dinheiro e as armas não precisa de “direito” algum para fazer o que bem quiser. “Mas e agora?” – Perguntou minha mãe – “Agora estamos nas mãos deles.” – respondeu a enfermeira. E ainda estamos.
Faz 66 anos que os ladrões invadiram minha casa e mataram meu pai e minha avó. Minha mãe se foi, há muitos anos, quando um míssil lançado por Israel explodiu a mesquita onde ela costumava orar. Minha irmã sobreviveu ao ataque, ainda que lhe tenha legado algumas sequelas. Ela vive num cortiço superlotado com outros palestinos que foram expulsos de suas terras e confinados em pequenos guetos super populosos e miseráveis. A infraestrutura é péssima, a energia elétrica é um artigo de luxo para poucos e mesmo a água é racionada. Israel ocupou todos os terrenos férteis e nascentes, deixando para nós apenas areia e humilhação. Há vários anos eu saí de Gaza em busca de ajuda no exterior, mas ninguém me deu ouvidos. Tentei voltar para perto de minha irmã, mas Israel não autorizou. Nenhum palestino que tenha deixado Gaza ou a Cisjordânia pode voltar, e ninguém que esteja lá pode sair. Eles construiram um grande e bem vigiado muro de concreto e arame farpado em volta dos nossos minúsculos territórios para garantir que ninguém entrará ou deixará suas prisões. Estamos todos presos, dentro ou fora de Gaza.
Ontem Israel bombardeou o cortiço onde minha irmã morava. Disse que era abrigo de “terroristas”. Mas qual a surpresa quando colocamos 1 milhão e meio de pessoas num espaço onde só caberia alguns poucos milhares? Onde é que os “terroristas” poderiam estar? Onde é que minha irmã poderia estar? Os supostos terroristas (que nós chamamos de resistência) morreram no ataque. Assim como minha irmã e todas as 38 famílias que se acotovelavam naquele edifício velho e fedorento. Demorou, mas finalmente eles conseguiram eliminar toda a minha família.
A explosão também destruiu uma escola que se situava ao lado. Mais de vinte crianças morreram instantaneamente. As que sobreviveram só sabem chorar de dor e de ódio. Amanhã elas renovarão a resistência e serão chamadas de terroristas pelas mesmas pessoas que explodiram sua escola. Mas elas sabem que uma mentira não se torna verdade a medida que envelhece, da mesma forma minha casa não deixou de ser minha casa porque os anos se passaram.
Soube que os ladrões que hoje moram na minha casa foram até uma pequena colina que há no meu quintal, onde eu costumava soltar pipas com meu pai quando criança. Eles trouxeram cadeiras e bebidas, e assistiram de camarote o bombardeio que matou minha irmã. Dizem que eles aplaudiam, urravam e davam gargalhadas todas as vezes que um novo e assustador clarão iluminava a noite de Gaza.