Um Relato.
Estacionei meu carro em uma das ruas mais antigas da minha cidade. Inclusive, quando criança, em uma das fases negras da minha vida, morei lá na casa de uma madrinha. Pouco período, mas o suficiente para nunca esquecer.
Muitas casas são tombadas pelo Patrimônio Histórico, outras já tombaram mesmo, literalmente, estão no chão. Quando sai do carro, fiquei em pé, correndo meu olhar em um dos trechos da rua. Um rapaz, desses flanelinhas veio até a mim e disse:
- Doutora, eu fico olhando. Quer lavar?
- Não!
- Por favor, Doutora, deixa eu lavar. Eu faço direitinho. E a senhora me dá qualquer coisa, para comprar meu almoço.
- Então lave só por fora. Só vou estar aqui depois do meio dia.
- Não se preocupe, quando a senhora chegar, vai estar um brinco!
Fui embora, assisti minha aulas, conversei com os colegas, tirei minhas dúvidas e voltei antes do meio dia. Chegando lá, o carro já estava pronto e, realmente, um brilho. Ele caprichou. Olhei para os lados e nada de vê-lo. Dei um tempo no mosteiro que fica naquela rua, inclusive meu carro estava estacionado bem na frente. Entrei, me ajoelhei e fiz uns pedidos daqueles que quando você se concentra, a lágrima desce... Levantei-me e sai. Fui olhar uns móveis antigos que estavam expostos ao lado, em um antiquário. Tinha uma porta aberta e uma árvore de frente, tendo a sombra para o lado do vento. Eu vi uma pessoa sentada e mexendo nuns papeis. Olhei de um lado para outro meio receosa, mas resolvi ir lá... Quando cheguei, era o rapaz, o flanelinha estudando. Ele olhou para mim, assustado e disse:
- Doutora, a senhora aqui!
- Sim! Estava lhe procurando para lhe pagar!
- Então, Doutora, a senhora é diferente. Tem gente que quando não me vê, vai embora.
- Não, você fez seu trabalho e vi que ficou brilhando mesmo. E mesmo que não tivesse ficado brilhando, eu pagaria. Você precisa...
Daí travei um papo com ele. Perguntei o que ele fazia ali com aqueles papeis, e ali debaixo daquela árvore isolada. Ele olhou para o chão, juntando os papeis e me disse que ali é a sala de estudos dele. Me interessei pelo assunto. Perguntei o que ele estava estudando, ele me respondeu rápido:
- Tudo, divido o tempo que tiro para estudar. Tem hora que estudo matemática, tem hora que estudo português, história, geografia, e assim vai.
- Qual sua idade?
- 19 anos.
- Tens o primeiro grau?
- Tenho doutora. Eu fiz o supletivo no ano passado. E este ano estou vendo se faço o de segundo grau. E quero estudar para fazer concurso em qualquer coisa. Mas sendo na área da Justiça, que paga bem, nem que seja para serviços gerais.
Dai eu fiquei muito curiosa e perguntei onde ele morava. Ele olhou para mim e disse com um sorriso no canto da boca.
- Na rua. Eu saí da casa da minha mãe, ela me batia muito. E meu pai, eu nem conheci. A ultima vez que ela arranjou um homem, ele ia me matando. Dai, eu fugi e nunca mais voltei e nem quero que ela me encontre. Já faz quatro anos. Só quero aparecer para ela quando eu puder tirá-la daquela vida. Tenho seis irmãos. Um dia desses, eu assistia o jornal em um bar que estava almoçando e vi um dos meus irmãos sendo preso. Fiquei calado onde eu estava. Nada posso fazer. Se eu conseguir, quando eu for atrás, que tiver resistido, eu ajudo. E quem não tiver, paciência.
Dai, fiquei calada com um nó na garganta. Sem resposta para ele, tirei da bolsa uma nota de dez reais e deu para ele. Ele ficou muito agradecido e disse que aquilo era uma ajuda valiosa. Eu falei que não daria mais porque também estava difícil para mim. Ele me acompanhou até o carro e alguma coisa nele me chamava a atenção: a quantidade de piercing. Perguntei a ele:
- Por que tanto piercing's?
- Inventei isso quando tinha 16 anos. Achava o máximo. Mas estou tirando aos poucos. É que tem uns que estão pregados, Aqui tem um médico que deixa o carro comigo todos os dias. Me disse que vai tirar para mim... Tem uns que eu fui tirar só e quebrou dentro da pele. Agora só com cirurgia.
- Você sempre está por aqui?
- Eu durmo aqui, ao lado do mosteiro. Dentro, mas do lado de fora. Atrás tem uma cobertura e só eu fico lá. Logo cedo, entro. Aqui fora é perigoso. Podem me roubar os meus trocadinhos. Nesta rua quase todo mundo me ajuda. E eu ainda ganho uma comidinha do mosteiro.
- Posso lhe trazer uma roupas?
- Com certeza, Doutora. Se a senhora vier até as quatro horas, eu estou aqui na frente. Não fico mais porque é perigoso. Quando os outros flanelinhas não nos roubam, é a polícia que pega a gente, fala o cacete e ainda leva nosso dinheirinho.
- Já aconteceu com você?
- Não, senhora. Mas já levei uns tapas por causa dos piercing's.
Nesse bate papo entrei no carro e sai pensando como a vida é estranha. Como é difícil, tantos com muito, esbanjando, jogando dinheiro fora, gastando com besteiras, futilidades... Vejo também que o mundo está de pernas pro ar. Fica difícil ajudar, oferecer mais. Viver, hoje, é um risco. Antes era diferente. Mesmo com tantas dificuldades, as pessoas tinham mais chance, mais facilidade. Violência sempre teve, mas hoje a vida está muito banal. O sentimento humano está pelos esgotos. Eu sei até onde devo ir, gostaria de poder fazer mais.
Aquele rapaz é um exemplo de perseverança e esperança no meio de uma dificuldade grande. Estudando e almejando melhores dias. Realmente, a salvação está nos estudos. Mas antes ele tem que ser sábio e muito sábio, esperto. Sua vida está vulnerável demais.
Com dois dias, voltei ao curso. Sempre estaciono no mesmo lugar. De longe, avistei ele lá lavando carros e, sorridente, me aproximei. Entreguei as roupas. Ele agradeceu e me perguntou se ia pintar uns trocadinhos. Eu olhei para ele, sorri e disse:
- Na volta.
Terminou o curso e eu deixei de ir. Pouco passo naquela rua. Meu itinerário é outro, totalmente diferente. Com o passar de dez meses, comprei o jornal na banca ao lado do meu edifício. Cheguei em casa, abri o jornal e estava uma notícia com letras bem grandes: MORADOR DE RUA PASSA EM CONCURSO PUBLICO. Comecei a ler a matéria e ao lado estava a foto. Logo o reconheci e me lembrei. Me veio o filme na mente das história que ele me contou.
No dia seguinte fui até a rua para ver se o encontrava. Lá encontrei um senhor que também o procurava. Resolvemos entrar no Mosteiro. Com alguns segundos, ficamos olhando para ver se o viamos, e vimos. Chamei ele e falei:
-Você conseguiu, passou!
- Para mim foi uma surpresa. Fiz supletivo e, com um mês, um médico que sempre tomei conta do carro dele me botou na cabeça de me escrever. Me deu um celular e eu estudei pela internet. Foi tudo muito louco. Eu não teria conseguido se não fosse a ajuda de vocês.
- Mas eu não ajudei!
- A senhora ajudou sim! Todas as vezes me dava um dinheirinho e trouxe umas roupas. E este senhor aí pagou um cursinho para mim de matemática, português e informática. E o dono do cursinho me deixou ficar dormindo lá.
- E o que você está fazendo aqui?
- Quando vi a notícia, eu sabia que muita gente viria aqui me procurar. Ninguém sabe que estou no cursinho e vou ficar por lá até ser chamado. Muito bom, estou com novos amigos e ainda ganho uns trocadinhos do dono por tomar conta. Minha vida mudou muito, Doutora. Eu acho que vou conseguir meus objetivos... Graça a Deus, a vocês e à internet.
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Publicado em 23/02/2014