E se fosses tu? - por Maria de Fatima Soares

E se fosses tu? - por Maria de Fatima Soares

E se fosses tu?

 

O dia estava normal quando saíra de manhã. Agora o mundo queria colapsar. Enfiava-se todo o dia naquelas salas brancas e despidas, onde iam dar corredores impessoais e longuíssimos, com portas vedadas e só o som do metal por companhia, para além duma aparelhagem pequena. Hoje tinha sido mais um dos dias caóticos em que nem tivera tempo de comer, como era seu hábito.

Crónico em si, quando o trabalho "abundava". Por isso, quando chegou cá fora as nuvens corriam altas, ao sabor dum vento forte que as empurrava infeliz. Quem sabe tão infeliz como ela, em algumas fases. O seu carácter ajudava a suplantar o insustentável. Era gélido, meticuloso, mas muito acessível num “terra a terra,” obrigatório, não destoando no tipo de labor que executava. 

No pequeno cartão identificativo deixado na bata, pendurada há pouco no cabide, ficara o seu nome e profissão. P. Matos. - Departamento de Medicina Legal. Para a maioria mal o declarava, gerava-se uma certa "reticência", logo acompanhada por vezes, do passo lento atrás. O encolher de receio, misturado com nojo. Entendia perfeitamente a reserva. O sorriso enviesado, disfarçando, mal. Procuravam assegurar-se sempre da veracidade da afirmação. E quando isso se obtinha como certo, pensariam: "Ups! Esta lida com mortos?!" Que raios de gente preconceituosa! Não eram os mortos os maus da fita, mas os vivos. Sabia-os identificar tão bem à distância.

Porém, uma ou outra vez tinha a agradável surpresa de notar um olhar de interesse. A curiosidade súbita, mesmo verdadeira, dos que gostam de saber. Não por curiosidade mórbida e estupidez "emo/dark" tão em moda! Sim, porque ainda existe um número restrito, com quem se pode ter uma conversa aceitável, com um pouco de massa cinzenta no sítio.  Raramente interrogava-se: Quando ouvisse aquilo, assim como o dizia, como quem aponta que é pasteleira, ou borda em linho... Directa e friamente o que aconteceria? Pondo-se no lugar dos outros e não tendo aquela paixão ou "queda", de analisar e procurar as causas da morte, (tendo a morte sempre uma desculpa...) o facto, lhe provocaria confusão? Não! Nenhuma. Não faria a mínima diferença, ser quem era e poder sentar-se e tomar um copo. Petiscar dos tremoços ou aperitivos, sem após enfiar despreocupada e casualmente a mão no recipiente, observar que mais ninguém se servia.

Mas a mentalidade tacanha, vezes de mais do que gostaria de encontrar, vinha duns saltos de quinze centímetros, acompanhados de unhas pintadas no último esmalte da moda. Do tipo que é tão ilustre e popular, que toda e qualquer coisa que a boca lhe produz é lixo, mas recebido e agraciado como prémio Nobel. Esses, desiludiam-na. Por que não a viam tão mulher e feminina como outra qualquer? Se não havia coisa mais normal que nascer e morrer! Tocar não vivos, era tal e qual, como trazer ao mundo, outros. Logo se não era parteira... Optara, por amor à profissão, ser médica legista e depois? Só não os trazia ao mundo. Ao inverso, cuidava de eles com afecto. O máximo respeito que se deve a alguém que jaz perante nós, tenha ele sido um indigente. Sorriu amargamente sem ver propósito na rivalidade que damos à vida. Metas que impomos, correrias que se fazem, outros que se atropelam. Nada o justifica! Só o amor deve... Deve viver-se, pelo amor.

Imediatamente o riso lhe secou no rosto. Recordou o dia em que de serviço, jamais lhe passaria pela cabeça...

O que mais a aterrorizava no início, quando ainda “verde” começara a ter de ficar “por conta própria,” chegando hoje a ser a coordenadora do departamento, era o tacto de serem todos gelados por dentro! Inanimados. Não haver pulsação ou estímulo, o que era idiota, claro. E o que mais a chocava eram as crianças. Nunca se conformava com ter de o fazer às crianças... Ele era um “miúdo” grande quando se conheceram! Cheio de vida e intensidade em tudo que se propunha, sempre.

Quando a abraçava... Não havia sensação melhor! A cortina de fumo a envolver-lhe o rosto, tornava-o quase irreal e inacessível, quando lhe deixava uma nuvem de mistério à volta do olhar, doce e terno, para desvendar um sorriso único, de dentes imaculados e certos, que a derretia por dentro. Quando iam às compras. Ao teatro! Ver uma ópera. A esperava ao fundo da escada do Instituto, de cabelo a pingar, desvalorizando sempre o uso do chapéu, num impermeável coçado com um livro na mão, devidamente protegido, para lhe oferecer. Certo e sabido seria uma qualquer novidade sobre Anatomia (que fora desencantar em algum recanto), após calcorrear meia cidade, só para a surpreender. Ela certamente já a conhecia, mas nunca revelava para não o melindrar. 

Sempre que arquejavam nos beijos dados, envoltos em carícias, excitados e presos de paixão, por que não podiam estar muito próximo! Tocarem-se, olharem-se mais demorada e profundamente, que não tivessem de envolver-se intimamente, fosse onde fosse. Tinha sido assim! Forte. Vinculativo. Mal os olhares dos dois se cruzaram, no primeiro dia. Ambos souberam que o outro era a “parte” que faltava. Fora um ano que passara rápido. Inebriante e compensador, que o levara a deslocar-se, para avisar os pais que pretendiam casar... Claro que aceitou, mal lho pediu! Embora nunca aprofundasse, nas vezes que pensava sobre, se desejava tornar-se “mulher de alguém,” tendo sido sempre independente e desprendida.

Não! Nunca esperara. Se houvesse quem lho dissesse reagiria mal. Com alguma gargalhada histérica e meteria férias (que nunca gozava), para repensar tudo e fugir. Escapar àquele destino pérfido e quase imoral. A poder prever, nunca, por nunca ser, o teria deixado. Mas fê-lo! Embora o colega a tentasse afastar dali, quando percebeu e a identificação foi conhecida. O tipo de acidente que o pusera ali, justificado. Como se houvesse justificação: Trinta e cinco anos e uma coisa daquelas, que o deixou... Irreconhecível. 

Talvez fosse esse pormenor? O estar irreconhecível, naquela marquesa de chapa?! Nas tais salas brancas e despidas, onde iam dar corredores impessoais e longuíssimos, com portas vedadas. O som do metal, era a companhia para além duma aparelhagem pequena, a debitar uma música romântica… O que pode haver de mais patético, quando a tinha sintonizada sempre no posto, onde predominava a música clássica?! Observara as suas próprias mãos, a princípio trémulas, depois precisas. A vontade louca de deixar-se ensandecer de vez. Soltar os gritos e as lágrimas, que bailaram por um segundo, na sua retina, mas declinou. Remeteu-as para um fundo, sem fundo, para onde atirava tudo, para lhe ser permitido continuar.

Naquele, dia! Em que a sua vida terminara com a dele e nem tivera hipótese de o beijar uma última vez. Prendê-lo novamente nos braços.

Foi “acordada” daquele torpor por uma buzina. Acenou com um sorriso amarelo a desculpar-se e evoluiu na marcha, querendo desvanecer-se literalmente. Era mais um dia em que o cansaço a visitava. A insanidade do que se passa num grande hospital, nunca será compreendida, nem por aqueles que nele trabalham. Mal acabam o turno, querem é fugir e esquecer. Muito menos (na maior parte, querem executar algumas tarefas) que os levam a aproximar-se duma morgue, onde os flimes de terror se fazem realidade. O mundo queria ruir com o vento, que rugia fazendo abanar as árvores violentamente e os papéis esvoaçarem, junto com as folhas a desprenderem-se, tornando o piso difícil. E ela? Lembrava-se que naquele dia, ironicamente vomitara! Porque acabara (estupidamente) de comer, havia minutos antes.

 

Maria de Fátima Soares

 

Publicado em 22/05/2014

 

 

 

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