FACTOTUM – O Barbeiro da Vila[1]
Coletânea de “causos” comentados no salão de um singular barbeiro, em minha Vila
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Nota: Recomenda-se a leitura da Introdução, publicada no site do autor: www.mariodemeroe.org para inteirar-se do contexto dos “causos”.
Causo 8
O Mala
O nosso barbeiro da Vila transformou-se em celebridade, após a visita da jornalista Shirley Cavalcante para conhecê-lo. Foi alvo de elogiosos comentários na comunidade, tendo recebido inúmeros cumprimentos. Mas o trabalho continua! Assim, ainda saboreando a fama adquirida, recebeu festivamente um cliente tradicional, professor de Direito Civil na PUC e funcionário público aposentado do Tribunal de Justiça, que contou o seguinte “causo”:
“Há alguns anos, eu era diretor do cartório de uma Vara, no Fórum Central, lugar de muitas tradições e respeito, frequentado por famosos advogados, e por estagiários de Direito, que cumpriam essa exigência profissional em seus escritórios. Todos com postura digna, formalmente vestidos, e faziam de sua boa apresentação pessoal uma espécie de sacerdócio.
Entre eles, havia uma figura curiosa: um jovem estagiário chamado Marcos, muito simpático, tímido, que usava óculos e falava pouco. Mas o que mais chamava a atenção de todos os funcionários, era a frequência incomum com que ele examinava os autos dos processos de seu escritório. Todos os dias e várias vezes ao dia, o estagiário pedia processos para examinar, quase sempre os mesmos. A seguir, escolhia um lugar sossegado, no balcão, e debruçava-se longamente sobre os autos, tomando algumas anotações.
Os servidores da Justiça sempre o tratavam com respeito, embora, entre jovens, sempre houvesse alguma informalidade. Os funcionários se referiam a ele como “o mala”, em sua ausência. Mas às vezes se descuidavam e mencionavam “lá vem o mala”, quando ele se aproximava da porta do cartório.
O estagiário fingia não ouvir, mas notava-se uma certa tristeza em seus olhos quando isso ocorria. Entretanto, nunca reclamou nem demonstrou qualquer aborrecimento. Muitas vezes, ao aproximar-se de algum funcionário, já seu conhecido pelas inúmeras vezes que comparecia, ele dizia, com sorriso irônico:
─ Alegrem-se; chegou o mala!
Mas um dia as coisas correram diferentes....
O “mala”, elegantemente trajado, circunspecto e exibindo uma imensa dignidade, aproximou-se do balcão e pediu a todos um momento de atenção, pois tinha algo importante a dizer.
─ Comunico aos ilustres senhores que tive a honra de ser aprovado no último exame da OAB, e agora sou, oficialmente, um advogado, “indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”, conforme artigo 133 da Constituição Federal. Ele declamou o texto constitucional destacando com a voz a alta posição que, merecidamente, conquistara.
─ Assim sendo, doravante, exijo um tratamento condigno com minha posição, afirmou, muito sério.
Os funcionários entreolharam-se, um tanto preocupados. Será que ele guardara mágoa pela troça que recebera? Mas era, afinal, uma forma de tratamento carinhoso, mas..., e hesitavam, pensando qual atitude adotar, até que o chefe tomou a iniciativa e perguntou:
─ Pois não, doutor. Parabéns pela aprovação nos exames da OAB. É digno de nosso maior respeito e admiração. Agora, para dirimir qualquer dúvida, poderia nos dizer como gostaria de ser chamado?
Ele permaneceu alguns momentos sério, com a testa franzida, como se meditasse sobre uma difícil decisão. Finalmente, para alívio geral, abriu um largo sorriso, e respondeu:
─ Bem, podem me chamar de Doutor Mala!
O jovem advogado foi efusivamente cumprimentado por todos os funcionários do cartório, apertos de mão, tapinhas nas costas, etc. A alegria de todos que acompanharam essa parte da carreira do ex-estagiário era sincera. Mas, diante do susto, prudentemente, passaram a cumprimentá-lo ou referir-se a ele como “o Doutor Marcos”.