Matei o Tiro - Folclore Nordestino - por Silva Neto

Matei o Tiro - Folclore Nordestino – Por Silva Neto

 

As festividades juninas, no Nordeste do Brasil, tornaram-se, ao longo dos anos, a principal pedida no calendário turístico do mundo. Toda região transforma-se em uma grandiosa quermesse, ou festa profana em comemoração a Santo Antônio, São João e São Pedro, durante todo o mês de Junho, sendo a mais divulgada a festa de São João, com direito a feriado nordestino e tudo. O religioso e o profano misturam-se nessas comemorações, evidenciando desde as novenas, as promessas e pedidos ao Santo casamenteiro, a queima de fogos, fogueiras, danças folclóricas, comidas típicas, quadrilhas, forró pé de serra, sanfona e baião. Mas, não é só isso. A época favorece disputas entre grupos as mais curiosas possíveis, como: a disputa das Reúnas, a guerra dos Busca Pés, assim como, disputas curiosas, como bater recordes em a maior Fogueira de São João, o maior Cuscuz do Mundo, a maior Canjica, entre outras, são formas de enriquecer o folclore, envaidecer os competidores vitoriosos e tornar a região conhecida. 

Fogo ou foguetão é o nome conhecido, no interior do Nordeste, daquele foguete que sobe lançando faísca e fumaça branca, disparando ao ar, a boa altura, um tiro forte e seco, transformando-se na vedete das comemorações festivas. A disputa criada pelo meu avô, João Caboaba, conhecida como “Matei o Tiro” permaneceu, entre as mais engraçadas e curiosas formas de disputas durante a festa de São João.

Esse folguedo consistia em soltar foguetões, toda à noite de São João, juntamente com os moradores da localidade, de tal modo que após o disparo de um foguetão lançado ao ar por um dos moradores, outro, aleatoriamente, lançava de imediato um foguete ao ar. No momento em que o rojão disparava, aquele que o soltou, grita em tom de gozação,  Matei o Tiro!

Essa disputa varava as noites de São João, e quem lançasse o último foguetão em determinada hora da manhã do dia seguinte seria o vencedor.

Certa vez, aproximava-se o mês das comemorações juninas, os comentários já se faziam ouvir entre os moradores que o vencedor do “Matei o Tiro” do ano anterior, havia sido Josué.  Caboaba não se conformava em haver perdido a disputa passada, sobretudo para Josué, seu desafeto. Eram vários os motivos alegados por ele: Primeiro: não era homem de perder.  Segundo: alegava que Josué foi o que menos lançou foguetões naquela noite de São João, guardando-os para soltá-los já perto do horário de terminar a disputa. Terceiro: o último foguetão de Caboaba havia falhado, nem chegando a subir, talvez pela frieza da noite ou por chantagem de Josué. Sem dúvida,  existiam razões que o deixavam tão irritado, principalmente, por não suportar as gozações de seus companheiros quando se referiam à última competição.  Será que Biu do Fogo teria usado de má fé a mando de Josué, colocando um rojão velho na sua encomenda? Assim pensava ele. Diante do pressuposto, Caboaba resolveu procurar outro fogueteiro para encomendar seus fogos. A Biu do Fogo não encomendava mais. Logo foi à procura de Zé do Galo, famoso fogueteiro da região. Embora mais distante, seus produtos ganhavam fama nos arredores de Catende e Palmares.

Cada um dos competidores havia encomendado seu arsenal para o dia festivo, mas nenhum sabia que Caboaba havia mudado de fogueteiro. Como o fogueteiro mais próximo era “Biu do Fogo”, lá pelas bandas de Lagoa dos Gatos, natural seria que as encomendas fossem feitas a ele que não era mau fogueteiro. Caboaba é que cismou de achar que havia tramoia.

O mês de junho aproximava-se; tudo estava convergindo para a maior disputa de todos os tempos.

 A Casa de Farinha era o local onde todos se reunião, aproximadamente, uns vinte moradores circunvizinhos àquela localidade conhecida como Barro Branco. Os comentários cresciam em torno da disputa do “Matei o Tiro” enquanto as festas juninas se aproximavam. Josué, por sua vez, deitava e rolava em cima dos Caboabas, chegando até em desavenças com meu pai, Amaro Caboaba, homem sério e respeitado e por todos querido naquela localidade. Meu pai até que aceitava o resultado da disputa do ano anterior, porém, reconhecia a má índole do ganhador; homem frio, gaiato, escroto por natureza, Josué não deixava por menos quaisquer deslizes dos Caboabas. — São perdedores mesmos! Dizia ele. Era preciso muita paciência suportá-lo, coisa que meu avô não tinha. Como se tratava de um jogo, uma disputa recreativa que a todos alegravam, depois de muitos conselhos dos filhos e netos, continha-se, esperando dar o troco na hora certa.

O milharal já estava com bonecas. O cheiro do pendão e suas folhas viçosas atraíam as abelhas e besouros deixando um aroma no ar característico à época junina. Os pássaros multicores invadiam a plantação em algazarra descomunal. Tudo parecia convergir para o dia “D”, sem dúvida, a mais empolgante das disputas para aqueles moradores. A expectativa aumentava a cada dia, principalmente, entre nós crianças, a ponto de sonharmos acordados com aquela disputa acirrada.  

Chegou o dia de Santo Antônio. As fogueiras foram acesas. Mas, Santo Antônio era só a preliminar da grande comemoração. A festa em si tem um tom de religiosidade, de promessas, feitiços e adivinhações feitas pelas moças em busca de casamento, principalmente as mais velhas, “vitalinas”, com medo de ficarem no “caritó”. Teve até procissão com andor e tudo!  Os foguetões eram disparados pelos adultos em comemoração ao santo casamenteiro até  com certa discrepância para não queimarem seus arsenais antes do dia da disputa. As crianças soltavam bombas, traques, busca-pés, estrelinhas, cobrinhas; até balões eram atirados ao ar, uma prévia do que deveria acontecer na noite de São João.  

Na antevéspera do grande dia ou, digo, da grande noite de São João, meu avô pegou o machado, entrou na mata em busca de lenha verde para fazer a fogueira. Meu pai e o caseiro seguiram com ele, puxando uma junta de seis burros para transportar a madeira.  Foram cedinho, e, como de costume, levam também um bom lanche na certeza de passarem o dia derrubando madeira e transportando-a para casa. Ao final daquele dia o terreiro estava abarrotado de toras de lenha tanto grossas como finas, prontas para serem empilhadas no dia seguinte, véspera de São João. Ao amanhecer o dia, a fogueira começou a subir. Uma fila de voluntários foi formada, todos transportando toras de lenha para perto da fogueira que, àquela altura, já era necessária uma grande escada para escalar os últimos barrotes e amarrá-los com cipó para melhor sustentação. A fogueira estava pronta. A maior fogueira da região, sendo acesa na noite de “São João”, mês de Junho, apagando-se por completa em meados de Agosto. Dona Lili, minha mãe, tias e vizinhas, preparavam a culinária típica, que a essa altura, o cheiro da canjica, pé-de-moleque, milho cozido e bolo de mandioca, davam água na boca. Eu, meus irmãos, primos, primas e toda rapaziada ornamentavam a casa com bandeirolas, varriam o terreiro e preparavam o arraial de chão batido para a quadrilha e arrasta pé, debaixo da grande jaqueira. Lá, o forró, quadrilha, coco de roda e vários folguedos iriam abrilhantar a noite ao som da sanfona de oito baixos do mestre Apolinário.      

João Caboaba, anfitrião e líder inconteste, recepcionavam os convidados e mantinha a organização geral da festa. Não permitia a presença de quem não fosse convidado, mesmo daqueles que pertencessem à festa dos patrícios moradores que estavam disputando o “Matei o Tiro”, para não haver suborno. O arsenal de cada um era guardado a sete chaves, principalmente, o de Caboaba, que achava que havia sido subornado na disputa do ano anterior. Portanto, os convidados eram velhos amigos dos engenhos Barro Branco, Mamote, Bálsamo e Bulandi, dos povoados de Jaqueira, Colônia e da Usina Frei Caneca. Os demais presentes eram todos familiares. Até os compadres ficavam de fora, desde que estivessem disputando o Matei o Tiro. Naquela noite, cada qual organizava sua festa com seus familiares e convidados escolhidos a dedo, a fim de que a disputa se tornasse limpa.

Às quatro da tarde o fiscal passou aferindo os relógios dos competidores com o seu, indo de casa a casa. Ás dezoito horas, quando a fogueira fosse acesa começaria a disputa, indo  até às seis da manhã do dia seguinte.

Enfim, chegou à hora. A fogueira foi acesa. O primeiro tiro veio da casa de Pedro Carlos, imediatamente respondido por Antônio Alves que matou o tiro de Pedro Carlos. Nelson Joaquim matou o tiro de Antônio Alves. Em seguida, Josué dava os ares da graça, matando o tiro de Nelson Joaquim, enquanto Caboaba matava o tiro de Josué, seu rival. Era uma prévia do que iria acontecer naquela  noite de São João.

A lua cheia despontava no horizonte avermelhando o infinito por trás das matas, enquanto o céu já se cobria de estrelas, nessas noites raras de inverno. O vento frio, de clima úmido, concentrava as pessoas ao redor da fogueira, embora o fogo da fogueira ateado de cima para baixo, ainda estava longe de aquecer o ambiente.

Os convidados começavam a chegar. A criançada, vestida ao clima da festa, surgia de todos os lados, soltando traques de massa, bombinhas, busca-pés, chuvinhas e estrelinhas. A provisão de alimentos era por conta das mulheres que já tinham colocado ao ar livre, debaixo de uma tenda, a grande mesa com toda sorte de comida típica. A noite estava apenas começando, quando Apolinário chegava com sua sanfona de oito baixos  para alegrar aquele folguedo.            

Enquanto isso, João Joaquim já havia matado o tiro de França, que havia matado o Tiro de Manoel André; que havia matado o tiro de João Lira, que havia matado o tiro de Germano; que havia matado o tiro de Gonçalo, que havia matado o tiro de Caboaba, que havia matado o tiro de Josué, e assim por diante, todos assanhados naquela disputa sem trégua noite à dentro. A fogueira queimando de cima para baixo deixava escorrer por entre as toras de lenha as brasas e faíscas derramando-se até o chão, onde as vovós aproveitavam para assar o milho verde colhido à tarde daquele dia. A juventude delirava no arrasta pé do forró pé de serra, na dança da quadrilha e no coco de roda ao som da sanfona, do pandeiro e da zabumba. Vez por outra Caboaba era chamado para apaziguar algum mal entendido entre o mocinho e a moçinha que dispensava da dança o cavalheiro, ferindo seu orgulho. Por sua vez o rapaz não queria que a moça dançasse com mais ninguém, levando Caboaba a interferir, serenando os ânimos e tudo voltava ao normal. Caso houvesse quem se metesse à besta seria definitivamente expulso do local, saindo por bem ou por mal.

Era mais de meia noite. Aos pouco se notava a ausência de alguém que ia descansar no depósito da cocheira, local preparado para tal, até se refazer e voltar à festa.

Caboaba não pregava o olho, sempre atento ao tiro vindo da casa de Josué, para em seguida matá-lo. Ninguém, àquela altura, pensava em desistir, o que só poderia acontecer lá pelas duas da madrugada quando o sono e o cansaço chegassem. Foi exatamente o que aconteceu depois das duas, ou por sono, por falta de material, ou por blefe. Em disputas anteriores o sujeito dormia cedo, guardando seu arsenal para quando estivesse raiando o dia. Assim, chegaria com bastante material na manhã seguinte. Já com Caboaba não acontecia o mesmo. Era um homem prevenido em tudo que fazia e quando entrava em uma disputa não desistia até o último minuto. Finalmente o dia amanheceu e somente uns quatro ainda resistiam, entre eles, Josué e Caboaba. Passaram a noite sem dá trégua um ao outro, prova de que Josué estava disposto a ganhar pela segunda vez, o que Caboaba não permitiria. A competição afunilou, restando apenas Josué e Caboaba naquela meia hora restante para o seu final. As torcidas haviam se formado, uma concentrada na casa de Josué outra na casa de Caboaba. A cada tiro o outro matava em seguida enquanto o primeiro matava o tiro anterior sem que ninguém soubesse prever o ganhador ou o que viria acontecer ao final. Josué havia dado o último tiro faltando alguns minutos para as seis da manhã, horário decretado para o final da disputa. De repente tudo emudeceu. Será que o arsenal de Caboaba teria falhado mais uma vez, ou ele tinha um trunfo na mão, uma estratégia mantida em segredo? Faltando poucos minutos, para as seis, não se ouvia qualquer resposta de Caboaba ao último tiro de Josué. O Fiscal já se posicionava na casa de Pedro Carlos, a mais próxima dos dois competidores restantes, de relógio em punho, na presença de duas testemunhas, para decretar o vencedor. Enquanto as torcidas, tanto do lado de Josué quanto do lado de Caboaba assistiam o descerrar daquela frenética disputa dos dois valentes competidores, com os corações nas mãos, tamanha era a expectativa.  Foi nesse momento que Caboaba distanciou-se um pouco do seu arsenal, com muito cuidado, tirou de baixo de uma lona algo impreciso, à distância, mais parecendo com um lança foguetes, com a haste longa demais para ser um foguetão dos que costumava soltar. Esse era especial. Zé do Galo havia caprichado na encomenda, mesmo recusando-se a fabricar tamanho rojão. Mas Caboaba ofereceu dinheiro dobrado para que ele fizesse um foguetão ao capricho.  Logo que meu pai, Amaro Caboaba, viu o tamanho do foguetão que Caboaba segurava, correu em sua direção tentando impedi-lo de acender aquele “trabuco”.

— Meu pai!...—Meu pai!..., — O senhor enlouqueceu? — Se isso “trabuco” disparar em sua mão, na certa, acabará com o senhor e todos nós. — Pelo amor de Deus não solte esse foguetão! Caboaba respondeu. — Aquele filho da égua vai ver o que é foguetão agora! Referindo-se a Josué. Foi quando Caboaba subiu uns oito degraus da escada que se encontrava na parede ao lado, para acomodar a haste de bambu presa ao rojão, pois era comprida demais em relação aos foguetes normais, ateou fogo e deu um grito. — Segura, Josué! A multidão concentrada no terreiro, até então em silêncio diante da expectativa daquela façanha, soltava gritos de viva Caboaba! Enquanto o foguetão lançava um ardor de faísca e fumaça de tamanha grandeza, a cuja força derruba Caboaba da escada, rolando-o degraus a baixo, sendo acudido ao chão pelo seu filho, Amaro Caboaba.

— Eu não lhe disse papai, para não soltar esse trabuco! A multidão de olhos para cima assistia aquele infernal ruído rumo ao céu límpido, subindo! Subindo! Subindo!  Muitas vezes mais que os foguetes comuns sem dar sinal de tiro. De repente, perde a força a uma altura incrível, inclina-se para baixo com o peso de seu rojão e vem vindo soltando fumaça em direção à plateia assistente. Nessa hora o reboliço foi demais. As pessoas tomaram direções diversas em algazarra, uns correndo para debaixo da jaqueira, outros para debaixo da mangueira, outros para o cajueiro, outros ainda adentra o roçado de macaxeira, o milharal, o bananal. Enquanto Caboaba estava sendo socorrido dentro de casa. Foi quando o rojão disparou a uns dez metros do chão. O tiro, de tanta violência, deixou os que estavam próximos, surdos por alguns instantes. O eco estendia-se num raio de seis quilômetros, juntando os vales, córregos, enseadas, matas e serras próximas, tal qual um disparo de um míssil. Logo, a multidão começa voltar para o terreiro. Todos estupefatos do que havia acontecido e, principalmente, para saber notícias de Caboaba que, a essa altura, estava na cama com três costelas quebradas, ladeado pelos filhos, noras e netos. A casa foi invadida por todos que queriam saber da saúde de Caboaba. Enquanto o velho ranzinza não tirava Josué da cabeça, ainda tentando esboçar um grito “matei o tiro”!  Ora, Não se ouvia mais tiro algum de foguetão. E se ouvisse, não passava de “peido de velha” após aquele tremendo tiro.

Mais tarde, os comentários eram gerais. A notícia tinha se espalhado que Caboaba havia vencido. A vizinhança começava aparecer para cumprimentá-lo pela vitória e, ao mesmo tempo, desejar saúde e recuperação para que ele pudesse está forte e firme no “matei o tiro” do ano seguinte. Só que a competição acabou. Josué enfiou a língua nos dentes após essa, enquanto os demais não ousaram mais competir com Caboaba.

Ainda hoje, quando ouço um tiro de foguete, recordo-me daquela expressão saudosa de meu avô “Matei o Tiro!”.

 

 

 

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