Nunca deixo o melhor para o final - por Téia Camargo

Nunca deixo o melhor para o final - por Téia Camargo

Nunca deixo o melhor para o final

 

Antes de completar a maioridade, aprendi uma lição que levei para o resto de minha vida.

Até então, eu acreditava que o melhor deveria ser deixado sempre para o final e que tudo o que era bom, o que era novo, o que era caro ou bonito devia ser guardado para uma ocasião especial.

Meus vestidos novos aguardavam no guarda-roupa, um dia da festa; os sapatos de salto alto só saíam para passear nos finais de semana; a maquiagem boa era economizada e às vezes até perdiam a validade ainda intacta; os perfumes eram usados com parcimônia e as bolsas  separadas em dias úteis (o sábado também era um deles), domingos e eventos.    

Eu era jovem e tola quando ingressei na Universidade, recém saída da adolescência,  e foi lá que conheci  minha “Best” como se intitulam hoje em dia as melhores amigas, que era quase tão menina quanto eu.

Em comum, nós tínhamos o entusiasmo pela vida e o fato de sermos descendentes de portugueses. Eu neta, ela filha.

No segundo ano de curso, ela sofreu um acidente de automóvel que afetou sua coluna e a deixou impossibilitada de comparecer às aulas.

Dentre minhas incumbências de melhor amiga estava a de ajudá-la quando precisasse, e embora existam aquelas que pensam que  amigo é só para a hora do “bem bom”, eu passei a frequentar sua casa duas vezes por semana para que ela colocasse em dia as lições e não perdesse o semestre.

Após as aulas da manhã, eu saía da Universidade, em Niterói, atravessava a Baía de Guanabara na barcaça, pegava um ônibus na Praça XY e ia direto para a casa dela, bem longe dali. Chegava morta de cansaço e faminta.

Os pais, um casal de imigrantes lusitanos que se desdobrava em atenções, não sabia o que fazer para retribuir minha gentileza em colaborar com a filha. Então, como todo bom português que se preza, me agradavam pelo estômago.

Os almoços de terças e quintas naquela casa, tornaram-se verdadeiros festivais gastronômicos. O bacalhau era fixo no cardápio. Só mudava o modo do preparo.

Os atributos culinários da mãe da minha amiga iam sendo demonstrados ao longo de sua recuperação e eu, um pouco mais cheinha do que no início das visitas, contava os dias e as horas para que chegasse logo o momento esperado de revê-la e de colocarmos os assuntos em dia, sentadas à na mesa da copa, onde meu prato estava sempre posto à minha espera.

Mas ela não era filha única. Havia um irmão, que eu não conhecia pessoalmente, pois estudava como interno no Colégio Militar,  se preparando para seguir carreira na Marinha do Brasil. Era cadete. Só vinha para casa nos finais de semana, quando podia e os estudos permitiam.

O rapaz era o xodó da mãe. Sempre que eu estava com ela, escutava uma história, um elogio, um episódio envolvendo sua vida particular, que à essa altura, deixara de ser tão particular assim, pois aos poucos eu me emocionava, ria, sofria ou torcia por aquele ilustre desconhecido.

E naquela quinta-feira,  em especial, a senhora estava mais empolgada do que nunca, pois o filho chegaria a qualquer momento.

Caprichara nos quitutes e fizera, como surpresa, Camarão à Portuguesa, aquele prato em que os camarões são douradinhos no azeite e depois se joga um suculento caldo do limão por cima.

Se a receita em si já promete, imagine quando nela se usam camarões gigantes. Não estou falando desses grandões que ficam por cima, escondendo os menores nas bancas de peixes de feiras e mercados. Não! Gigantes mesmos. Imensuráveis, como eu jamais tinha visto, que dirá comido. Ficou uma maravilha!!! Com três pontos de exclamação e tudo.  

Ele não tinha hora certa para chegar, fomos servidas e no prato da filha, a mãe colocou apenas dois, pois além de não caberem muito mais do que esse número, um dos destinados era tão somente, o maior dentre todos os grandões.

Minha amiga, que assim como eu, sempre deixava o melhor para o final, arrumou bem arrumadinho o gigantesco crustáceo na beirada do prato e o bicho ficou lá, esperando seu momento de ser degustado, como clímax daquela orgia de sabores.

A mesa onde almoçávamos se localizava bem ao lado da porta de serviço, por onde o jovem e garboso militar, devidamente fardado de branco adentrou, debaixo de efusivas exclamações de boas vindas.

O entusiasmo familiar era tanto, que ninguém reparou que enquanto éramos apresentados, seus olhos ávidos, acostumados aos intensos treinamentos de observação, tinham como foco outro interesse que não a minha pessoa.

Foi então que se deu o fato.

Com apenas uma frase, o aspirante a Oficial decretou minha mudança de comportamento.

- Oba, camarão...

E sem dar tempo a que alguém pudesse impedi-lo, aproveitou a posição estratégica da mão que me estendera para cumprimentar, deslocando-a com tamanha rapidez que nem mesmo o grito da irmã impediu a abocanhada que consumiu boa parte daquele pedaço “melhor que ficou para o final”.

Depois desse episódio, que eu jamais esquecerei, não deixo nada para depois, nem guardo coisa alguma para uma futura ocasião especial.

A gente nunca sabe se a vida vai chegar na surdina, nos pegar desprevenidos e abocanhar a melhor parte, tomando-a de nós, de maneira irremediável, para sempre.

Melhor garantir!

 

 

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