O Inesquecível Pantanal de Tiago - por Fernando Jacques - JAX

O Inesquecível Pantanal de Tiago - por Fernando Jacques - JAX

Convém prevenir o leitor desavisado de que esta não é uma crônica do belo pantanal matogrossense, decerto igualmente inesquecível para quem o visita. Trata-se aqui de outro lodaçal, como os aborígenes do grupo tupi denominavam a região da cidade do Rio de Janeiro em que se formou, mais tarde, o bairro da Tijuca.

 

Nesse bairro, Tiago nasceu e criou-se, vivenciando uma época de ouro do Rio, entre os anos 50 e o início dos 60, no embalo da bossa nova. A partir de meados dos anos 60, a cidade começou a enfrentar problemas novos e mais sérios, pois, além de haver perdido o status de capital política do Brasil, passou a ter sua rica atividade cultural reprimida progressivamente, como se o longo regime militar houvesse confundido o sentido da palavra progresso, gravada na bandeira pátria. Tiago continuou na Tijuca e no Rio até 1974, quando ocorreu a célebre fusão (ou confusão) dos estados da GB e RJ. Mudou-se então para Brasília, a fim de assumir o emprego que conseguira em um órgão público, mediante concurso, é bom que se esclareça para não pensarem mal do rapaz. 

 

Nas férias e em toda outra oportunidade, voltava com prazer ao velho ninho tijucano, embora esse prazer fosse irremediavelmente contido pela deterioração cada vez mais evidente do seu bairro da infância e adolescência. Para começar, já no final dos anos 70, Tiago sentiu que não mais era seguro caminhar à noite pelas ruas que cansara de percorrer nos “bons tempos”. Lembrava-se de como vagava a qualquer hora da noite, livre e despreocupado, em torno da Praça Saens Peña, no coração da Tijuquinha, em sua incansável sanha de paquerar as meninas e encontrar um novo amor ou simples nova amizade. O passar dos anos não mudara seu convencimento bairrista de que as garotas mais lindas do Rio (e do mundo, por que não?) estavam na Tijuca. A quem quer que falasse do assunto, afirmava com toda convicção que se Tom Jobim e Vinicius frequentassem o Café Palheta, em vez do bar da antiga Montenegro, teriam composto a Garota da Tijuca, permanecendo a de Ipanema em absoluto anonimato.

 

Pois é, naqueles saudosos tempos, Tiago batia perna à vontade pela Saens Peña e, se não tinha sorte nas paqueras noturnas, restava-lhe o consolo de um delicioso pastel com caldo de cana no Polis ou no Hélio’s, nas esquinas das ruas General Roca e Desembargador Izidro. Outra opção restauradora para encerrar a noite era ir ao Bob’s, na mesma General Roca, para o inesquecível milk-shake, acompanhado de batatinhas fritas, que só perdiam para as que sua mãe fazia em casa.

 

Tiago lamentava o crescimento vertiginoso da criminalidade na sua Tijuquinha, onde os furtos ocasionais e quase pitorescos do passado deram lugar a assaltos à mão armada, cada vez mais frequentes e violentos, orquestrados pelo crime organizado. Nesse novo contexto, o morro do Salgueiro deixara de ser uma referência somente do bom samba do bairro. Uma pena!

 

Apesar dos riscos existentes mesmo durante a luz do dia, Tiago insistia em suas caminhadas nostálgicas pela Tijuca, refazendo os milhares de passos dados ao longo de diversas ruas. Na Almirante Cochrane e na Clóvis Bevilacqua, recordava como caminhava célere, quase correndo, para não chegar atrasado às aulas da Cultura Inglesa e da Aliança Francesa. Como ainda eram nítidas as imagens da falante Marisa, do endiabrado Wilson e da bonita Raquel, a girar suavemente em torno de uma das finas colunas de ferro que amparavam o telhado e à qual se segurava, como se estivesse a executar algum balé romântico. Pela rua José Higino, graças ao zelo da mãe, a caminhada transcorria mais serena, sem atrasos, rumo à sua primeira escola, a Afonso Pena, situada na rua Barão de Mesquita. Ali, com sorte, selecionavam-no ocasionalmente para hastear a bandeira enquanto todo cantavam o hino nacional, antes de seguir para as salas de aula. O sentimento de patriotismo parecia-lhe mais fácil nos tempos de infância.   

 

Entre os roteiros favoritos de Tiago, figuravam a Avenida Maracanã, nos dias de jogos no estádio do mesmo nome (oficialmente, Mário Filho, vá lá), e a Conde de Bonfim, via de acesso aos cinemas, que eram uma de suas maiores diversões, como que obedecendo ao lema de Luiz Severiano Ribeiro.

 

Por falar em cinemas, a nostalgia de Tiago ficava mais forte cada vez que ele passava pelos locais que abrigavam as antigas salas. Se era menos pródiga em bares badalados do que suas primas ricas da Zona Sul do Rio, a Tijuca nada tinha a invejar no campo da sétima arte. Dispunha de amplas e confortáveis salas, entre as quais as do Metro, Art-Palácio, Bruni-Tijuca, Olinda, Rio, América e Carioca, sem falar no Madrid, na rua Haddock Lobo, mais longínquo do circuito caminhante da Saens Peña (mas de fácil alcance pelas muitas linhas de ônibus do bairro, como a 220 - Mauá-Usina, que por ali passavam na ida e na volta, quando a mão dupla ainda era o padrão). Tiago frequentava todos esses cinemas e também o Britânia e o Bruni-Saens Peña, verdadeiros “ovinhos” em comparação aos demais. Apesar da triste e gradual desaparição dos cinemas tijucanos, ao longo dos anos 70 e 80, Tiago sentia-se feliz em recordar os tantos bons momentos que vivera nesses antigos templos de magia. Um episódio da infância que muito lhe divertia lembrar-se foi a vez em que fora ao Carioca com sua professora e uma colega de turma da escola Afonso Pena. Ao entrar no cinema, separou-se delas momentaneamente e, quando buscou por elas, viu-as primeiro refletidas no grande espelho que cobria a parede esquerda da ante-sala. Ao vê-las, não hesitou e partiu em sua direção, chocando-se com um garoto que parecia querer obstruir sua passagem. Só após a segunda tentativa é que o distraído Tiago se deu conta de que se chocara contra o espelho. Cheio de vergonha, voltou-se na direção certa da professora e da colega, que felizmente não perceberam seu erro ridículo.     

 

A rua preferida de Tiago na Tijuca segue sendo a Antônio Basílio, onde residiu durante praticamente todo seu tempo de Rio de Janeiro. Percorrê-la virou programa obrigatório cada vez que volta ao bairro. Ainda se recorda das casas que ali havia e em breve desapareceram, dando lugar a mais e mais edifícios capazes de atender à explosão populacional carioca. Ao passar diante do Edifício Nigri, onde morou, Tiago sempre recria as imagens do seu saudoso grupo de amigos, meninas e meninos que se reuniam na calçada a conversar e ocasionalmente a cantar, ao som do violão do Ricardo. O violonista, vez por outra, era forçado a interromper a melodia e partir em carreira atrás do “Melão”, que lhe fizera alguma gozação além do suportável. Quase todo final de semana, organizava-se uma festa na casa de alguém. Bebia-se cuba libre, dançava-se tirando ingênuos sarros e viviam-se as ilusões que antecedem a idade adulta.

 

A Tijuca aparenta estar degradada. Pode ser fruto da nostalgia, mas Tiago é levado a crer que houve algum empobrecimento no aspecto do bairro. Pontos de comércio tradicionais, como a sapataria Polar, a Mesbla, as Casas da Banha e muitos outros, fecharam as portas. O movimento de carros e pessoas aumentou de forma insustentável. A construção do metrô desfigurou a praça Saens Peña ainda mais. Não obstante tudo isso, Tiago, como bom tijucano, não se deixa desanimar. Um bairro que se ergueu - e triunfou - sobre um lodaçal tem em si mesmo força suficiente para refazer-se. Da lembrança inesquecível dos bons tempos passados fica a confiança inquebrantável nos dias futuros em que voltar à Tijuca será sempre motivo de prazer.

 

In Traços e Troças

Ed. Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP, 2015

 

 

 

 

 

 

 

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