primeiro conto do livro "Causos de Amor & Desamor".
1. O LOURO ECLÉTICO
Há meio milênio atrás, a baía de Guanabara foi avistada pela primeira vez pelos exploradores lusos. O cenário majestoso e deslumbrante impressionou os navegadores portugueses, e até mesmo o exigente e carrancudo capitão Gaspar de Lemos.
Como imaginaram estar ancorados na foz de um grande rio (e era a entrada do mês de janeiro), concordaram em nominar essa nova terra de Rio de Janeiro.
Na noite que antecedeu o primeiro dia do ano de 1501, os marinheiros mais animados com a passagem do ano e excitados com a beleza exótica do país tropical, mal puderam dormir. Aproveitando a calmaria e a brisa quente que soprava naquela noite, deitaram nos convés de suas embarcações e contemplaram as estrelas por várias horas. Acostumados a seguir o rastro dos astros por quase toda vida, nem deveriam se impressionar mais com elas. Porém, algo diferente aconteceu.
Como a queima de fogos que iluminam os céus da moderna Copacabana no réveillon, diria que o brilho das estrelas naquela noite foi algo excepcional. Elas piscavam multicores e dançavam a valsa da meia-noite ao compasso dos tambores que ecoavam da terra firme. Mesmo não conhecendo habitante algum do local, aquele ‘samba’ era indicativo certo de que a terra era habitada por um povo alegre, e em sintonia com a vida. Mal se contiveram, aguardando o raiar do primeiro dia do ano.
Os índios tupinambás – devidamente adornados e pintados nas cores alvinegras, já os aguardavam quando eles desembarcaram no aterro do flamengo. O palco estava devidamente armado para recepcionar os visitantes enviados pelo grande mar. Uma mesa extensa, improvisada na praia, expunha uma variedade enorme de frutas e pescados assados na brasa. Apesar do banquete proposto, as atenções dos marujos se concentraram nas mulatas nativas. Por meses a fio só puderam comtemplar água, homens rudes e malcheirosos. Agora, tinham diante de si ninfetas semivestidas, dançando e cantando só para eles! Antes que pudessem cometer qualquer ação indecorosa, tiveram que ser contidos pelo capitão Lemos.
“Raios que o partam... Ora, pois, pois. Atenção gajos..., onde estão seus modos? – tragam os baús com os presentes...”
Espelhos, bijuterias, facas, guloseimas da confeitaria lusitana, foram as ‘iscas’ mais usadas. Na verdade os visitantes esperavam ludibriar os nativos com essas novidades sem valor real e levar deles ouro, prata, pedras preciosas e finalmente, a autoestima.
Agora foi a vez do Pajé Cariocão conter a sua turba.
Todo bronzeado, só de sunga e boné à moda local, fez ressoar sua voz de comando; mas não sem antes dar uma ou duas gingadas (como esses dribles de passista) para trás, pousando seu ray-ban na cabeça.
“Qualé o meu; nem parecem cidadãos de bem e residentes da orla mais linda do planeta... Assim nossos visitantes vão levar uma impressão negativa da nossa cidade maravilhosa; afinal, onde estão nossas boas-maneiras; ficaram todas no morro?...”
Ao som do seu apito, todos se alinharam em formação e freneticamente os instrumentos de percussão ressoaram. Como que hipnotizados, os portugueses dividiam seus olhares entre os pés e os quadris das dançarinas. Por um instante esqueceram-se da missão que os motivavam. A princípio estranharam que o pajé falava – ainda que com um estranho sotaque, a mesma língua deles! Nem perceberam que o era o multicor papagaio – apelidado Zé Carioca, e estava no ombro do chefe, que era o ‘playback’. Além de ser poliglota, o louro conhecia bem as manhas dos exploradores. Foi a esperta ave quem num voo rasante primeiro avistou as caravelas com os brasões de Sagres e já sabia de antemão das reais intenções dos estrangeiros.
Assim, todo o circo foi armado pelo pássaro verde e amarelo com bastante antecipação. Enquanto as dançarinas hipnotizavam os visitantes, a ave líder comandava a operação Resgate da Dignidade com as três companhias de elite cognominadas de Araras Azúis. Sem demora alguma, essas – com o auxílio dos melhores remadores tupinambás, saquearam as embarcações. Todos os tesouros que os salafrários haviam roubado dos irmãos da Baía de todos os Santos foram recuperados. Em seu lugar, os baús foram preenchidos com piritas ou ouro-dos-tolos. E com esse mesmo ouro falso, os tupinambás pagaram o shopping daquele dia festivo. Os nativos deram de bom grado muito mais do que os mercadores requisitaram.
Obtendo mais do que esperavam, os gajos invasores se apressaram em tomar o caminho de volta; afinal, seus navios estavam abarrotados e a coroa portuguesa [que estava sedenta por novas fontes de renda, e por esse feito] ficaria eternamente grata.
No topo da extravagância da nobreza lusitana, ainda havia grandes obrigações para com Roma. Dizem as más línguas que até o dia de hoje a Santa Sé desconhece o fato de que suas mais belas basílicas estão adornadas com a imitação de ouro. Mas o importante é a [má] fé, que transportaram montanhas da América do Sul até a Europa. Se Anhanguera ou o Diabo Velho foi capaz de atear fogo na água[rdente], por que o vicário louro não seria capaz de transformar pedras em pão ou em tesouros que as traças e ferrugem não consomem?
Zé Carioca sabia perfeitamente que aquela não seria a primeira e muito menos a última visita estrangeira a desembarcar por aquelas bandas, e com seu sotaque característico, quase cantado, foi logo avisando.
“Não vem que não têm ó meu... ninguém sairá impune tentando passar para trás nossos conterrâneos... somos todos da irmandade Filhos de Deus... mexeu com um, tocou na caixa de maribondos: vai sair ferroado!”
Setecentos metros acima, do alto do morro do Corcovado, o louro e seus camaradas observavam atentamente as últimas caravelas que deixavam a Baía de Guanabara. Suas amigas maritacas foram quem descobriram aquele ponto estratégico de observação. Nada poderia passar despercebido num raio de trezentos e sessenta graus! Foi então, que o sábio louro teve uma brilhante ideia: Se transformaria numa estátua gigante, postada ali mesmo, vinte e quatro horas por dia. Com braços abertos, daria as boas vindas a todos os homens de boa vontade; contudo; como um goleiro bem posicionado debaixo das traves universais, mandava uma clara mensagem aos malfeitores – ‘daqui vocês não passam!’
O que o esperto louro não esperava, porém, era que uma vez transformado em pedra perderia sua capacidade de mediar em favor dos humanos. Deixaria de ser poliglota; a propósito, não falaria língua alguma. Tinha boca, mas estaria mudo; ouvidos, mas deixaria de ouvir. Os olhos – ainda que abertos lá do alto, nada veriam. Suas mãos e pés estariam imóveis para sempre. A maior de todas as perdas foi a capacidade de voar. Nem mais sinais dos órgãos alados. Fincado ao solo, suas raízes o imobilizariam para sempre como fazem com a árvore. Transformou-se em monumento gigante que só ornamentaria o Alto da Boa Vista.
Hoje, se foram os louros, as araras, e as maritacas. Dos Tupinambás, nem sementes restaram! A Baía maravilhosa ficou à mercê dos forasteiros e mercenários...
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Se bem que vovó Filomena não fosse a personificação de uma mercenária, ela tinha tudo de uma forasteira. Deixou o interior, mais precisamente o norte das Minas Gerais para a capital do país – o então estado da Guanabara, à procura de uma vida melhor para ela e a sua prole. Ela e toda família vivia num regime de semiescravidão em uma fazenda nos arredores do município de Vau-Açu, distrito de Ponte Nova.
Seu antigo patrão, o Coronel (naquela época, qualquer latifundiário podia receber essa menção honrosa) Bonifácio, era bisneto de um barão do café, que se gabava ter raízes com a Coroa [Portuguesa] e Camões. O homem havia perdido quase todas as terras da família, e nas poucas que restaram, o que produzia mal dava para sustentar a si e os empregados que o serviam. Ainda assim, não perdera a pose de um aristocrata colonial. Pior, mantinha toda a perversidade acumulada de seus antepassados.
Mesmo depois da alforria, mantinha sua senzala em plena atividade. Seu capataz, um tal de Tavares, impunha severas punições quem ousasse desrespeitá-lo ou desobedecesse as ordens do coronel. Era ele quem selecionava as negrinhas para ‘servir os gostos’ do patrão.
Minha vó foi fruto dessas maldades. Nasceu na senzala, mas alvinha como o patrão... Tornou-se a morena mais linda da região. Não era sem razão que ela cresceu contando com o rigor e o ciúme da patroa.
Para abafar a situação, Tavares assumiu [contragosto] a paternidade, mas com que custo! Deu três filhos à sua ‘filha’ e a obrigou, mais tarde, casar-se com um peão miserável.
Joaquim era um pobre coitado, que apesar de banguelo, era especialista em domar animais bravos e fazer filhos. Deu mais seis [filhos] à minha vô. Pobrezinha dela – deve ter sofrido como ninguém! Com nove filhos vivos e outro tanto abortados, sua saúde foi seriamente comprometida. Aos trinta e cinco anos de idade aparentava ter sessenta. Essa desgraça, porém, provou ser-lhe favorável. Ela deixou de ser o foco das atenções por parte dos homens. Jogada para escanteio ou ao anonimato, ela pode cuidar melhor dos seus próprios interesses e de seus filhos.
Essa e muitas outras perversidades cometidas contra os empregados não ficaram impunes, porém. Falam mesmo de maldição sobre a casa de Bonifácio. Com o passar dos anos um desastre após outro assolava a região. Quando não era seca, enchentes varriam as lavouras e moradias. A grande crise do café da década de trinta atingiu em cheio aquela zona cafeeira. Para agravar ainda mais a situação, a doença bateu à porta dos patrões. Dona Bertola, a esposa de Bonifácio, caiu em profunda depressão (especialmente ao ficar sabendo das atividades promíscuas do esposo) e a filha veio a óbito decorrente de um surto de meningite. Depois da morte da Ritinha – a única herdeira da família, o estado de saúde de sua mãe piorou ainda mais, juntando-se à tumba da filha poucos meses mais tarde. Elas eram tidas como dois anjos levadas por Deus a fim de poupá-las do sofrimento e vexame. Com a morte das duas, ao invés de se redimir, Bonifácio tornou-se ainda mais determinado nas práticas nocivas contra seus semelhantes.
No dia em que a Segunda Guerra Mundial terminou, Filomena declarou igualmente sua independência. Poucos dias antes, o seu marido – o peão Joaquim, havia falecido num grave acidente de montaria. Enquanto tentava domar um garanhão, foi arremessado violentamente contra um poste do curral. Atingido na cabeça, sua morte foi imediata. O ingrato patrão não demorou a ordenar o despejo da mãe com os filhos, obrigando-os a deixar o casebre onde eles ocupavam por anos. Estava ávido por se desvencilhar desse embaraço de décadas.
Sem mobília alguma, e com os pertences reunidos em apenas dois jacás, Filomena e as crianças partiram em direção da estação ferroviária mais próxima dali. Com a ajuda financeira da filha mais velha – a Marta Leocádia, que já se achava na capital, deveriam ir ao encontro dela. O carro de boi, ofertado por um amigo para conduzi-los, entoou tons melancólicos durante todo o trajeto de vinte e seis quilômetros. O único quem ousou interromper a triste cantiga foi o velho louro.
Dominguinho – como os meninos apelidaram o papagaio da família, era o único que não derramara uma lágrima sequer. Ao contrário, estava mais faceiro do que nunca. Era a alegria da casa, e agora, a única do momento. Ficava mais tagarela quando via todos reunidos.
Devido à sua procedência, muitos acreditavam que Dominguinho tinha parte com o Cão. A própria dona Filomena acreditava nessa versão. Dada às crendices, e supersticiosa como era, já havia dado banhos de salmoura e arruda nele. Mas o tentado não mudara um tiquinho sequer da sua atitude. ‘Metia o bico na vida de tudo e de todos’! Nada lhe escapava aos olhos e ouvidos.
“Como uma simples ave poderia saber tanto?” – indagavam.
O papagaio sofria de múltipla personalidade. Escravo do passado e com a memória congestionada, seu temperamento variava frequentemente entre o santo e o profano. Era incrível como ele conseguia entoar estrofes inteiras dos cânticos litúrgicos. As ladainhas, e até partes da missa em latim conseguia interpretar!
“Ave Maria cheia de graça
O senhor é convosco
Bendita sois vós
Entre as mulheres
E bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...”
O que assombrava, entretanto, era que do nada ele mudava o tom da reza sacra e partia para as modinhas profanas – aquelas que faziam arrepiar o mais impudico cristão. Antes mesmo que se pensasse em funk, ele já cantava com coreografias obscenas, coisas do tipo “ai seu eu te pego, ai, ai, se eu te pego...” Suas duas asas pareciam dois braços, fazendo inveja a qualquer Teló da vida!
Conseguia repetir frases inteiras, decoradas durante seus quase cinquenta anos de existência. O danadinho sabia mexer com todos e tinha uma modinha para cada filho e ocasião...
“Terezinha de Jesus de uma queda foi-se ao chão, acudiram três cavalheiros todos de chapéu na mão...”Minha mãe – Therezinha de Jesus (esse era o real nome dela), dias antes havia levado uma tremenda queda de uma mangueira. Adão, o irmão mais novo, não demorou a ensinar a ave a cantar essas estrofes. A esperta ave entendeu o espírito da coisa, e foi logo tratando de reanimar sua melhor amiga.
Para a Eva, quem mais relutava abandonar as paragens do interior mineiro, o louro improvisou um Gonzagão: “Só deixo o meu Val Açú, no último carro-de-boi...”
Conhecendo as habilidades do Dominguinho, quando alguém tinha um ‘recado’ para dar, não hesitava em passa-lo adiante, usando a ave como mensageiro. De tanto ouvir a mãe chamar o Gilberto de preguiçoso, a música da ocasião era: “A formiguinha corta folha e carrega, quando uma deixa, a outra pega... Deus não quer preguiçoso em sua obra – senão o tempo sobra”.
Outra que tinha muita preguiça de acordar cedo para escola, era a Maria Rita. É para ela o refrão: “Acorda Maria Ritinha; acorda prá fazer o dever, as horas estão passando, e a aula já começou”.
Falando em escola, a pequena sala de aula da fazenda era palco de muitas punições. Naquela época, dona Albertina – a professora dos quatro níveis primários, não fazia reticências para usar sua temida palmatória. Com os ouvidos sempre aguçados, o papagaio ouvia e repetia as frases mais comuns durante a chamada oral de matemática.
“Três vezes cinco... Páh... ai, ai, ai! Quinze menos oito... Páh... ai, ai, ai... Duas dúzias... Páh... ai, ai, ai...” Espalhafatoso como era, gritava o seu ‘Ai’ usando o mais alto agudo e batia freneticamente as asas, imitando o galo durante seu canto matinal.
Essa mania de imitar tudo o que via e ouvia, por vezes trazia um grande constrangimento ao infrator. Do seu esconderijo no alto do paiol, o louro testemunhara inúmeras confissões íntimas, e sem pudor algum as repetia em aberto.
“Vai Deuzita, vai... não para não... estou quase chegando lá.... Ahhhhhhhhhh!
Quando a juvenil apareceu grávida, todos já sabiam o que havia ocorrido e quem era o pai da criança. Foram tantos os segredos revelados, que até surgiu um complô para dar cabo de Dominguinho. Não fosse pela intervenção da Therezinha, trancando-o numa gaiola e mantendo-o sempre por perto, o pássaro já teria sido a muito sacrificado.
Entre os muitos palavrões do repertório, “desgraçado” era o mais comum e ameno. De quando em quando ele deixava escapar um “filho do capeta”, ou “filho da p...”. A maioria desses xingamentos ele aprendeu do capataz Tavares, homem sem escrúpulos ou temor a Deus.
Em contrapartida, ninguém podia negar que o louro era de grande serventia. Em mais de uma ocasião ele havia cumprido o papel de cão de guarda, protegendo a propriedade contra invasores de duas ou quatro pernas. E olhe que quando ele soava o alarme o caso era sério! Graças a ele, até o próprio coronel havia escapado de um atentado contra sua própria vida. Se houvesse alguns contra, a maioria o apoiava.
Na verdade, a princípio o louro era uma ave de estimação dos patrões. Ritinha o recebeu como presente por ocasião do seu décimo primeiro aniversário. Ela e a Therezinha – a filha mais nova da vó Filomena, eram da mesma idade e na surdina cultivavam laços estreitos de amizade. Entre elas não havia segredos ou barreiras de classe social. Além disso, estudavam na mesma sala de aula. As duas concordaram em batizá-lo como ‘Dominguinho’, e eram as únicas que ele permitia fazer-lhe cafuné ou levar para passear. Qualquer outro ganharia uma bicada daquelas se tentasse qualquer intimidade. Agora, com a partida da filha e da mãe, a pobre ave foi desprezada por completo.
Numa manhã fria de inverno, ele foi encontrado no chão, duro como pedra e sem sinal algum de vida. Dado por morto foi jogado no valão. Esse era uma enorme cratera que ficava no extremo oeste da fazenda, cerca de dois quilômetros e meio da sede, lugar esse pouco frequentado, a não ser por ratos e urubus. Todo lixo e restos mortais eram ali lançados. Acreditavam que alguns dos empregados desaparecidos haviam sidos espancados até à morte por capangas de Tavares e lançados nessa sepultura à céu aberto. Desde então, todos evitavam aquele lugar que julgavam assombrado.
Para a tristeza de alguns e alegria da maioria a notícia da morte de Dominguinho logo se espalhou. A primeira versão que saiu foi de que ele voou para o céu para se encontrar com o anjo Ritinha. Outros diziam que ele havia sido devorado por uma enorme coruja canibal que rondava a área. Mas só Therezinha sabia do real paradeiro dele...
Ela foi a única testemunha ocular do ocorrido. Seguiu de perto o jagunço e viu quando ele descartou a ave como uma casca de banana. Cobrindo as narinas – para proteger do terrível mau cheiro, ela literalmente mergulhou no inferno para resgatar o corpo do seu amigo. Depois de lamentar bastante e prestar as últimas homenagens, resolveu dar-lhe um enterro digno. Colocou-o dentro de uma pequena caixa de papelão – onde ela guardava seus bordados prediletos e bilhetinhos de amor, e cavou uma sepultura correspondente. Ao fechar o improvisado caixão, porém, quase caiu de costas com o susto. Ela juraria que a asa esquerda havia se movido! Sem desgrudar os olhos, segurou a respiração por alguns segundos: de novo viu repetir-se o movimento.
“O bandido está vivo... ele não morreu...”, pensou ela em voz alta, quase gritando de alegria.
Afagou suas penas com cuidado, tomou-o nos braços e saiu em disparada na direção do córrego. Lá, ‘batizou’ várias vezes o louro, deixando que gotas d’água penetrassem por entre seu bico entreaberto; depois, enrolou-o no seu cachecol. Fazia frio, e ainda era muito cedo. Uma densa neblina se acumulava até o meio da colina da capela... Aproveitou que não tinha ninguém à vista e foi direto para o velho paiol. Como era pouco usado e frequentado, o local era um esconderijo ideal para acomodar o amigo durante sua convalescência.
Recebendo todos os cuidados necessários, em uma semana Dominguinho já estava novinho em folha. Como um gato, não havia esgotado suas sete vidas ainda, e sua despedida desse mundo soou como alarme falso.
Por precaução, Therezinha resolveu trancafiá-lo numa gaiola durante o dia e só soltá-lo à noite. Não demorou ao esperto louro adquirir os dotes e costumes noturnos. Voava como morcego e caminhava como pantera. Envolto no breu da noite se movimentava livremente e conseguia, sem ser notado, acompanhar todos os movimentos na fazenda. Pelas manhãs, prestava um relatório completo à sua benfeitora.
Numa noite festiva de São João, quando a fogueira e as tochas iluminavam o terreiro, o louro deu um rasante e dezenas de pessoas puderam vê-lo. Um jovem corajoso que já estava na metade da escalada do pau-de-sebo, vendo-o de pertinho, chegou a ouvir o som do vento nas asas. Ao reconhecer o papagaio, desconcentrou-se da sua tarefa e caiu lá de cima. O alvoroço foi total! Cada um saiu em disparada em direção às suas casas, saltitando e gritando de pavor:
“O fantasma Dominguinho está solto... ele até voa!”
Foi um deus-nos-acuda, e durante dias, o assunto ocupou a pauta de todas as conversas. Chegaram a sugerir uma missa de sétimo dia pela alma penada do louro. O Coronel Bonifácio chegou até dar uma boa doação à paróquia de Fonte Nova, implorando para que monsenhor Anselmo viesse rezar a tal missa e benzer cada canto da fazenda. Afinal, tudo de bom ou ruim que acontecia por lá, tinha a ver com o louro. Meses mais tarde, por ocasião do natal, o vigário apareceu para rezar a missa do galo, digo, “a missa do louro”.
Naquele dia, o bispo e o padre assistente ficaram ocupados por horas no confessionário. A partir do patrão, seu capataz, capangas e os demais empregados, todos tinham pecados a declarar, pedindo perdão por suas múltiplas faltas. Durante a distribuição das hóstias, o coronel não seguiu o ritual costumeiro. Sentindo-se o pior dos pecadores, ocupou o fim ao invés do início da fila. Quando o oficial da cerimônia ergueu o pão para pô-lo na boca escancarada do carrasco, do nada surgiu o louro voando, e com o bico levou-lhe a hóstia. Lá do alto da viga que ficava sobre o altar, sem delongas ou cerimônias o pássaro devorou cada pedacinho do pão eucarístico. Os olhares de todos na capela se centralizaram nele. O silêncio era tal que só se ouvia o bico do louro enquanto comia.
Era mesmo o Dominguinho em penas e cores; ele estava bem vivo!
‘Bom de bico’ como era, ato contínuo o papagaio foi logo dizendo:
“Eu te perdoo... eu te perdoo...”
A declaração ecoou nitidamente para que todos ouvissem.
Reconhecendo as palavras como sendo as últimas da sua falecida esposa para ele, o coronel caiu de joelhos aos prantos.
Dona Bertola possuía um coração mais puro e lindo do que seu nome podia comportar. Mesmo sabendo de todo mal praticado pelo esposo contra ela e seus semelhantes, ainda assim, usou suas energias remanescentes para expressar perdão em favor do seu maior algoz!
Quanto ao Bonifácio, a visão do fogo infernal parecia aterrorizar sua alma tão profundamente, que seus olhos esbugalhados pareciam saltar da órbita ocular. Estava como que diante da corte divina e precisava confessar atos que os ouvidos humanos ainda não haviam escutado. Diante dos subalternos e as autoridades convidadas começou enumerando seus crimes um por um. A lista foi longa e chocante. Quando terminou, estava rodeado pelos ofendidos, prontos para esfolá-lo vivo. Não fosse pela intervenção do delegado – que por acaso se achava entre os convidados, seu fim teria sido mais feio do que sua vida. Sob vaias e palavras ofensivas, o tirano saiu dali direto para a cadeia de Fonte Nova.
Segundo fontes fidedignas, temos informações de que ele e seus aliados foram julgados e condenados. Bonifácio passou o restante de seus anos numa penitenciária de segurança máxima, carcomido por sua consciência que lhe atormentava de dia e de noite. Tinha pesadelos constantes com um juiz em forma de louro...
Ah, sim, o louro... Aclamado como grande herói, ele foi o responsável não só pela condenação dos malfeitores, mas pela aplicação da justiça em favor dos prejudicados. A fazenda foi dividida entre os empregados explorados durante anos, e que nem sequer recebiam salários. A cada um foi agraciado terra e casa para morar, passando a ser proprietário de seu próprio chão.
Foi à partir de então, que por aquelas bandas se sacramentaram e ficaram célebres frases como:
“Eu juro pela alma do louro...” (Quando alguém queria dizer que não estava mentindo).
“Que o louro te carregue...”(Lançando praga sobre opositor ou inimigo).
“O louro não gosta de menino desobediente...” (Advertindo criança traquina e teimosa).
“Pelas asas do louro...”(Grande surpresa – fato surpreendente).
“Desejo-lhe toda a sorte do louro...” (Votos de felicidade e/ou rápida recuperação)
O louro Dominguinho passou a fazer parte da família da vó Filomena (que recusou sua parte na distribuição de terras e continuar morando naquele mesmo local), logo, seria levado com eles para o Rio de Janeiro. Era a primeira vez que deixariam a região nativa em busca de uma vida melhor.
Pouco antes de embarcarem na Maria Fumaça que os conduziria até a cidade maravilhosa, o eclético louro deu mais um testemunho de sua versatilidade. Do nada, começou e enfatizou os principais pontos de uma conhecida prece.
“Pai Nosso que estás nos Céus, santificado seja o Teu nome... o pão nosso de cada dia dai-nos hoje... perdoe as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os nossos devedores... Não nos deixe cair em tentação, mas livra-nos do mal... Amém!”
A família se uniu ao louro na oração e juntos partiram rumo à terra prometida.