O Observador - por Anchieta Antunes

O Observador - por Anchieta Antunes

                  O     OBSERVADOR

 

            Ele estava escarranchado lá na ponta do velho muro sem reboco, de bermuda rasgada, os pés pendurados sem as sandálias, os ombros caídos e o olhar derramado sobre o pedregulho e poças de chuva. Ele morava numa manilha de adutora; ali ele pendurava sua rede, olhava-se no pequeno pedaço de espelho preso na parede; na trempe de ferro cozinhava seu mingau diário. Com a cabeça prateada e a barba por fazer com aquela navalha cansada de raspar seus pelos hirsutos e grisalhos, o ancião caminhava nas velhas e conhecidas ruas do lugar.   Olhava o acontecido que fazia pouco tempo de acontecer. Devastação. De vez em quando os olhos baços escorregavam pra cima como que para lembrar o que tinha visto. Foi assustador; também foi emocionante.

            Começou com o mundo escurecendo em pleno dia. Que será que está acontecendo? Perguntavam todos. As portas da frente e do quintal eram poucas para dar vazão a tanta gente curiosa. Todo mundo correndo pra rua ou pro quintal, pescoço esticado, mão em pala e o olhar assustado, como se estivessem vendo o fim do mundo; ou o começo do fim.  

            Os meninos sorriam e choravam ao mesmo tempo, com um medo medonho. Os menores agarrados na saia da mãe, as meninas de mãos dadas com o pai. Parecia a confraternização do horror, a janela do holocausto, o som binário do trovão rouco e cansado das alturas. Aquela massa escura não mostrava nenhuma brecha de boa vontade, de benevolência. Parece que tinha vontade de sufocar o mundo todo com seu manto escuro e indevassável.

            O velho estava em sua morada, resguardado pela altura, protegido pelo fatalismo. Dalí ele via tudo e nada podia atingi-lo; de lá ele observou ao redor, e percebeu a aproximação do desastre, que vinha chegando pintado de negro, e do vermelho escorrendo na palheta do momento angustiante.

            Mais pra baixo, pros lados da Estação, sob a alameda de jambeiros, o homem vinha pedalando sua bicicleta com total displicência, como se tivesse toda a eternidade à sua espera. No caminho sem trânsito, algumas charretes cavalgavam em direção a algum interesse humano, perto ou longe. O ciclista olhava para um lado, para o outro, procurando ver a corrida aflita de uma lebre, de um coelho, de algo pulsante para prover seu jantar e o de sua morena dengosa. Em nenhum momento levantou os olhos para o céu aterrador, ainda silencioso.

            No campinho onde a meninada da escola brincava de criança desprevenida, o vento irreverente levantava a poeira; alguns galhos secos e papeizinhos de bombons: apenas trocando de lugar aquele lixo lúdico e irresponsável. Não havia ninguém a descoberto. O céu conjurava em assembléia. O velho observava...notou a falta daquele menino que sempre jogava sozinho com uma bola de borracha. Nem ele estava preenchendo um pedaço do espaço do campinho.

            O sino da Capela começou a dançar, empurrado pelo vento que chegou com força e rugindo entusiasmo. O badalar soava sonoro e aterrador, prenunciando a chuva transformar ruas em rios. Não demorou muito!

            De repente, mais rápido que o passamento, o ciclista foi jogado contra o tronco, onde ficou preso pelo impacto, juntando sua seiva vermelha à da arvore; em alguns dias serviria apenas como adubo orgânico. Morreu antes do coelho.

            O sol amedrontado recolheu-se mais cedo; foi dormir pacificamente no fundo do horizonte, onde descansam as lembranças, onde dormem os amores eternos, onde a memória perde o brilho da vida, onde o coração dormita seu ultimo alento.

            O manto pegajoso e de olhos bem abertos roncava seus trovões assustadores, preenchendo o eco vazio da serra distante, retalhando os ventos passantes, enchendo o mundo todo de rancor, de pavor, de horror. Ameaçava lançar-se de uma só vez, como se fosse um balde jogado ao acaso. Eram milhões de metros cúbitos de água grossa e traiçoeira. Nenhuma alma hidrófoba conseguiria nadar na sua trajetória de redemoinhos endiabrados. Arriou como o cansaço arria o homem cansado do cabo da enxada mexendo na roça. Chegou para destruir e depois ir embora, como se não tivesse feito nada de mal. Pura natureza.

            Rios  inteiros desabaram de uma só vez; os relógios pararam por três horas, três anos, por todos os séculos. As veredas, ruas, becos e estradas estavam embaixo d’água, como se um grande Nilo tivesse vindo deixar seu limo vivificador sobre a terra inerte. Um grande espelho ondulante deslizava vale abaixo refletindo a luz do sol ressurgente. A fúria liquida havia trocado nas casas, os móveis por lama pura e fétida. Os telhados foram transformados em leitos, em berços, em pesadelos recorrentes.

            Uma semana depois o esqueleto da vila estava à mostra, caveira suja sem vida, carente do sopro de Deus. Pedras soltas junto à parede da casa em desalinho, galhos inteiros e uma árvore com um corpo pregado no tronco; não muito distante uma roda de bicicleta retorcida como um pensamento cruel.

            Sobrou uma horda de órfãos: órfãos de pais, mães, tios, primos, irmãos, avós, amigos, namoradas, vizinhos, rivais, antagônicos, e os apenas conhecidos da bodega da esquina, onde se tomava, todas as tardes, a cachaça do congraçamento. O lugar estava triste: todos estavam tristes.

            Da cumieira do rancho o menino guardava com cuidado dobrado, a sua bola de borracha.

            O velho continuava  balançando-se na sua rede, com o mingau pronto para ser sorvido. Sua manilha estava seca como sempre esteve; o espelho estava ali, preso à parede, suas sandálias atiradas ao deus dará, e sua vida não sofrera nenhum revés. Apenas havia caído uma chuva forte lá em cima na adutora. Ah! Na cidade também. E ele, o velho continuou ali tão somente como

                                                  O     OBSERVADOR

                             

Só perde o que tem

quem tem o que perder.

 

Santa Catarina – Rio Grande do Sul – Japão”

 

ALAOMPE

Anchieta Antunes

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Gravatá- 19/07/2014.            

 

 

 

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