O Santo que habita em cada um de nós - por Giovane da Silva Santos

O Santo que habita em cada um de nós - por Giovane da Silva Santos

O SANTO QUE HABITA EM CADA UM DE NÓS

 

( Conto do livro Não há Guarda-Chuva contra o Amor’ )

 

Cinco graus Celsius numa atípica madrugada no novembro carioca. Só que o recorde na queda da temperatura foi o fato que menos impressionou o repórter Jerry Brício, que dormira ao relento, para gravar uma matéria sobre a via crúcis dos sem-tetos. Um homem moreno de barba cerrada, estatura mediana, distribuía agasalhos retirados de um container, entre os mendicantes da Avenida Rio Branco, dando abraços prolongados. De toda extensão da avenida, brotava uma inesperada população de novos mauricinhos e patricinhas de odor acre e olhares iluminados. Em seguida, o homem tirou a própria camisa, os tênis, cobriu uma octogenária, quase hipotérmica, e seguiu de peito desnudo rumo à Biblioteca Nacional. Lá, escalou as colunatas da fachada principal e empoleirou-se no telhado do frontão central, numa postura de flor de lótus, deixando-se banhar pelos raios de sol que acordavam a cidade. Toda essa sequência era exibida ao pelas câmeras de sua equipe que acionou o núcleo de jornalismo da Globo News.

Quem seria aquele sujeito que, franciscanamente, vestia miseráveis e sugava como um avatar as energias das primeiras horas da manhã? Um líder de alguma seita a arrebanhar multidões de sofredores? Aquele cara não enquadrava-se no grupo dos doidos varridos ou aproveitadores da fé alheia.

Seu impactante gesto tornou-se viral nas mídias on-line. Curiosos, entusiastas e fanáticos ocuparam as ruas próximas à Biblioteca Nacional em poucas horas. Todos ávidos para ouvirem quem ou o que motivou aquele homem à tamanha altruísmo, quando todos civilizados se preocupavam em aquecer-se debaixo de seus edredons nas caixas de cimento e concreto da cidade.

Jerry recebia orientações dos seus superiores para cobrir o furo. Joana Borges, a mulher do profeta da madrugada, entrou em contato com sua emissora, assim que pipocaram as primeiras imagens de seu marido Jairo na tevê.

Ele embarcara numa viagem de autodescobrimento, após a morte do filho Emannuel, atleta olímpico de ciclismo, atropelado por um ônibus no Leme. Além de uma noiva grávida, o rapaz deixara uma tempestade emocional na cabeça dos pais. Jairo passou a percorrer todas veredas religiosas à busca de uma explicação, que arrancasse seu desejo de berrar que o universo jogava dados de azar. Ele bebeu o Santo Daime, sabatinou monges franciscanos, desentendeu-se com vendedores de lotes no paraíso, buscou por cartas psicografadas, a serenidade dos orientais. Imergiu em uma peregrinação mística. Não conseguia entender como um rapaz, sempre engajado em serviços voluntários, podia morrer, enquanto tanto político filho da mãe e traficante continuavam por aqui. Aquela morte repentina foi um soco em seu estômago.

Essas palavras vomitadas num desabafo, sem pausas, por Joana, numa entrevista na emissora, não conseguiram amansar a histeria da multidão que acendia velas e orava, para o homem no teto da Biblioteca. Jerry escalou o telhado do prédio e alcançou Jairo, que despertou, percebendo que o que quer que tenha planejado fugira do seu controle.

"Que esse bando faz aqui me olhando, como se fosse uma vaca sagrada da Índia?!".

"Vestir os mendigos da cidade na madrugada mais fria do ano lhe rendeu status de santo. Te ajudo a fugir dessa manada, se me conceder uma exclusiva. Que me diz?".

"Que caridade alheia não é pauta de show business.  Devo ter pego no sono, quando me aquecia. Não esperava essa romaria. Não sou nenhum profeta do últimos dias!".

"Então afia a língua que tem gente aí achando que é primo do Espírito Santo".

"Vocês querem saber como encontrar a Deus?!". Jairo levantou-se, emplumando o peito. "Então não endeusem a ninguém! Não estou aqui pra levantar bandeiras! Só distribuía algumas doações! Se é esse o milagre que querem, podem fazer o mesmo com um pé nas costas! Eu só fui atrás de minhas respostas e não preciso de mais nada!". 

Perplexidade de uns, vaias de outros. Aquele discurso gerou um leque de reações na insólita multidão, enquanto ele sumia pela janela do quarto andar.

'Fui atrás de minhas respostas!'. Essas palavras não saíam da cabeça de Jerry, na viagem até a emissora. Jairo o encarava como se fosse desvelar um segredo bíblico.

"Foi seu filho morto que lhe deu a resposta?".

"Sim e não. Existem vários caminhos para se chegar à Verdade. Se quer saber se recebi comunicados proféticos do meu filho, para distribuir meus bens entre os pobres, não... não recebi! Você já escutou a música do silêncio, rapaz?".

"Nem na fase do desbunde! Você teve um êxtase e escutou Deus?! Esse tipo de assunto pode cair no sensacionalismo barato, mas posso dar um tom de seriedade à coisa, desde que... colabore comigo! Falo nessas tretas de espíritos que virou moda no cinema! Não levo fé nessa besteirada, mas fiquei perplexo, quando tirou a roupa do corpo naquele frio filho da mãe! Você recebeu um oi do além? Profecias sobre o futuro?".

O furgão estacionou no estacionamento da emissora e, sem responder, Jairo o deixou falando sozinho e correu ao encontro de Joana, que o esperava. Ele acariciou o semblante da mulher e, antes que ela dissesse algo, segredou num sussurro.

"Ele está aqui dentro...". E apontou o peito. "Vai conosco, junto a todas boas lembranças, porque existe um fio invisível que une a todos seres deste e do outro mundo. Ata-nos por diferentes séculos! E antes que me internem, eu só posso dizer que resolvi reproduzir o que ele faria, se estivesse aqui. Então me ajuda a convencer esse jornalista que eu não sou um iluminado. Ele está doido pra me vender como um clone do Inri Cristo".

Joana se desmanchava diante do humor ácido do marido. Como Penélope, que recebia Ulisses após sua grande odisseia, ela deixava Jairo ancorar sua nau em seu íntimo. Só que ele não precisou navegar vinte anos em mares tenebrosos. Em sua empreitada, Jairo descobriu que todos estamos interligados, mesmo separados por tênues dimensões. E que, independente das veredas trilhadas, nenhuma porta se abre, enquanto não fizermos a travessia pelo Divino, que habita em nós.

 

 

 

 

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