Renê Fernandes - Entrevistado

Renê Fernandes - Entrevistado

Com proposta inovadora apresentamos 'Gestalt - metonímias de um amor póstumo'

Por Shirley M. Cavalcante (SMC)

 

Renê Wellington Pereira Fernandes é natural de Avaré, interior do Estado de São  Paulo. Não  só  nasceu  como cresceu e viveu sempre ou no interior de São  Paulo  ou no interior do Paraná. Formou-se em Letras/português-alemão  e cursou mestrado em Teoria e Crítica Literária.  Escrever para ele é  uma paixão  no sentido amplo da etimologia da palavra (pathos). Ele já  traduziu quatro títulos da  literatura infanto-juvenil alemã  para o português, a saber:  Kindertheater rund um die Welt ( “A volta ao mundo ao redor do teatro infantil"), de Bernhard Lins; Alle wollen was von  Murmelbär (“Todos querem alguma coisa do urso Murmúrio), de Gina Ruck-Pauquèt; Bist du krank, Rolli-Tom? (“Você está  doente, Tom?), de Matthias Sodtke; Die  Konferenz der Tietê (“A conferência dos animai), de Erich Kästner e revisou outras tantas não  só  do alemão , mas também do inglês  para o português. Recentemente, Renê  ganhou  o Prêmio  Literário Livraria Asabeça &  Bignardi- Papéis  2019 e terá  uma de suas poesias  publicada na antologia Asabeça  - a cabeça  que voa, cujo lançamento dar-se-á em dezembro deste ano corrente. Antes disso, em 2006 e 2009, ele já  havia  chegado duas vezes à  fase regional do Mapa Cultural Paulista.

 

“O despertar dos sentidos para uma existência ulterior; o alcance de uma zona limiar entre o belo e o grotesco, o real e o ficcional, a poesia e a prosa; a fruição  de uma obra única em sua proposta.”

 

Boa leitura!

 

Escritor Rene Fernandes, é um prazer contarmos com a sua participação na revista Divulga Escritor. Conte-nos, o que o motivou a se dedicar a arte da escrita literária?

Rene Fernandes - A satisfação  é  minha.  Agradeço  pela oportunidade.  Vários fatores me levaram a escrever, desde minha ânsia por ler, mesmo antes de ser alfabetizado, até  a percepção  de uma espécie de “pulsão de escrita” (temas, imagens, enredos, vozes narrativas e versos que assomam à  minha mente com frequência), passando pelas histórias extraordinárias  que ouvi em tenra idadade e pela própria necessidade de “compartilhar meu fardo", ou seja,  expressar meus medos, sonhos, angústias, alegrias e frustrações; os quais, no fim das contas, podem ser iguais ou até  idênticos aos dos meus semelhantes.

 

Soube que estás a concluir a escrita de um livro. Como surgiu inspiração para a obra?

Rene Fernandes - Rsrs... A inspiração  surgiu por meio de uma experiência  pessoal cruzada com referências da literatura e do cinema.  Foi duarante uma convesa com um amigo – na qual, ele me chamou a atenção para um ponto, embora óbvio, até  então  imperceptível para mim quanto à minha experiência pessoal - que comecei amarrar uma coisa à  outra. Na verdade, há  uns quatro anos, eu já  havia delineado o esboço  daquilo que seria o conto “ Àquelas mãos “, mas, na época, ele me serviu a outro propósito, e eu ainda não  tinha noção que retornaria à  minha cabeça do modo como retornou e, desta vez, para integrar um projeto literário peculiar.

 

Quais os principais objetivos a serem alcançados por meio da leitura do livro?

Rene Fernandes - O despertar dos sentidos para uma existência ulterior; o alcance de uma zona limiar entre o belo e o grotesco, o real e o ficcional, a poesia e a prosa; a fruição  de uma obra única em sua proposta.

Qual o título?

Rene Fernandes - Gestalt: metonímias de um amor póstumo.

 

Quais critérios foram utilizados para escolha do título?

Rene Fernandes - A princípio, eu me debatia com “Metonímias de um amor póstumo”, “Metonimias de um amor espectral" e apenas “Metonímias de um amor". Saí do impasse como se sai naturalmente desse tipo de questão: consultando a opinião de amigos. O título deveria conter em si a apresentação  da temática, do método empregado  para desenvolvê-la, da proposta estética  e até  mesmo da estruturação das narrativas. Mais uma vez, um amigo interveio é propôs que eu intitulasse o livro somente de “Gestalt”. Pois, segundo ele tinha tudo a ver com o tema é com a proposta, além  do que, ele havia pensado nesse nome devido ao fato de eu ter estudado alemão  na Universidade , de eu gostar da língua e de já  ter feito algumas traduções literárias desse idioma para o português. De início, achei que soaria pedante um nome desse tipo, mas, quando amadureci a ideia percebi que esse termo estabeleceria um paradoxo muito propício se juntado ao título  anterior  (agora subtítulo), “Metonímias...”

 

Comente como está sendo o desenvolvimento de escrita dos textos para compor a obra.

Rene Fernandes - Um trabalho intenso ao qual,muitas vezes, tenho de entregar algo de mim que eu reluto em expor: as memórias de momentos felizes entrecortadas pela lembrança de dias frios e tristes, passados na mais terrível e absoluta das solidões.  Também é  fato que, além de ter de escapulir do “trabalho da vida com seu lógio  invisível, que tira o tempo de tudo que é  perecível”, por vezes, eu sofro daquilo que Ray Bradbury chama, em seu livro “Death  is a lonely business", de “náusea literária”.

 

Qual a previsão para lançamento do livro?

Rene Fernandes - Início do ano que vem. Antes do fim de seu primeiro semestre.

 

Quais os principais desafios para escrita da obra.

Rene Fernandes - Além dos citados anteriormente, incluo a difícil tarefa de conciliar as demandas profissionais e pessoais do meu dia a dia, e o trabalho minucioso com a forma, o gênero  e subgêneros embutidos uns nos outros dentro da obra e o modo como tenho de traçar cada uma das metonímias de forma única e, ao mesmo tempo, concatenada, de modo a formar o todo que elas evocam. Esse último é  um trabalho que visa a dar verossimilhança interna a fatos que externamente não existiriam.

 

Resuma o livro em duas palavras

Rene Fernandes - Nesse caso, eu me vejo forçado  a resumir em uma palavra arbitrariamente composta por duas: lirismo-mágico.

 

Pois bem, estamos chegando ao fim da entrevista. Muito bom conhecer melhor o escritor Rene Fernandes. Agradecemos sua participação na Revista Divulga Escritor. Que mensagem você deixa para nossos leitores?

Rene Fernandes - Leiam incessantemente. Aceitem indicações de leitura novas, por parte dos amigos ou mesmo dos desconhecidos, abram-se a isso, permitam-se experimentar o pathos  humanos a partir de diversas perspectivas. E, para aqueles que além de ler, aspiram a escrever , ratifico as palavras de Dostoiévski em grau superlativo: “Para escrever é  preciso sofrer, sofrer, sofrer...” e a elas acrescento minha emenda: é  preciso sofrer e rescrever o sofrimento.

 

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Texto extraído de “Gestalt: metonímias de um amor póstumo”

Rene Fernandes

Àquelas mãos

Havia aquelas mãos. Aquelas mãos que se entrelaçavam com as minhas, que se encaixavam como a engrenagem de um mecanismo estranho. Eu seria capaz agora de escrever um tratado sobre essa ciência que inventei na minha cabeça, a quirodáctilogia.

Havia aquela mão que pousava sobre minha coxa enquanto andávamos de carro, como que para dizer :“te peguei, não vai a lugar nenhum sem mim!”. Aquela mão longilínea, com dedos finos como fios de heméra, de um branco atravessado unicamente pelo tom esverdeado das veias; uma pintura impressionista que nenhum Monet jamais teria oportunidade de matizar. Havia aquelas mãos que mergulhavam no meu rosto, contornavam o meu corpo remoldando a argila adâmica. Elas cobriam meus olhos para, em seguida, desvelar a melhor, a mais bela de todas as surpresas.

Havia aquela mão, frágil, fina e delicada. Mão que eu costumava fisgar sobre a minha coxa direita, enquanto dirigia, para levá-la até a boca e beijá-la com a maior suavidade e devoção que me eram possíveis, como se tocasse com os lábios a espuma dos dias.

Entretanto, para resguardar esse gesto, era necessário um movimento sincronizado e arriscado: como não queria me desprender daquela mão em hipótese nenhuma, eu soltava a minha outra do volante e com ela passava a trocar a marcha. Era um ritual que se repetia duas ou três vezes por semana. Um ritual furtivo, para pronunciar em silêncio aquelas três palavras mais repetidas a esmo por aí, mas que nunca são o suficiente. De nós elas não irromperiam assim tão facilmente.

Havia aquelas mãos que aterrissavam em mim como a fuligem escondida dos dias esquecidos, que traziam em seu bojo a saudade de um tempo em que eu não vivi, em que eu não vivera e em que não viveria nunca. Nunca mais. As mãos que escreviam o futuro de um pretérito menos-que-perfeito.

 Aquelas mãos, duas peças de mármore dependuradas em uma alma permanentemente doente, já me esbofetearam e  me esmurraram com a leveza e os sentimentos misericordiosos de uma dor sincera. Arranharam-me não para me machucar, mas para escavar o que tinha sobrado da ilusão que um dia eu havia sido. 

Então, numa manhã, elas se levantaram para me apedrejar e num esgar de punhos retorcidos agarraram e giraram a maçaneta rancorosamente diante de mim tão rápido quanto bateram a porta num estampido atrás de si.

 Depois disso permaneceram inertes, estendidas na direção do chão, frias e enrijecidas. Tolhidas pela letargia, não se ergueram mais, nem sequer para ensaiar o nosso adeus. 

Haveriam aquelas mãos...?

 

 

 

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