Romaria ao Muquém - por Luiz Ernesto Wanke e Marcos Luiz Wanke

Romaria ao Muquém - por Luiz Ernesto Wanke e Marcos Luiz Wanke

ROMARIA AO MUQUÉM

                                                                                                                                                                POR LUIZ ERNESTO WANKE E MARCOS LUIZ WANKE

 

Esta viagem foi transcrita dos manuscritos inéditos – cadernos de viagem – de Raimundo Henrique dês Genettes, um médico francês que nos últimos anos de sua vida foi sacerdote católico no Planalto Central, região onde hoje está Brasília. Na época (1880), era vigário em Santa Luiza, Goiás (hoje Luziana). A romaria foi feita a cavalo para comemorar as festividades de 15 de agosto, cortando a Chapada dos Veadeiros, no dia de Nossa Senhora da Abadia, no Muquém. Depois da festa e aproveitando a oportunidade, seguiu adiante para levantar as potencialidades auríferas do Rio Maranhão, na altura da Cachoeira do Machadinho. Desta maneira, pode Genettes exercitar os dois lados de sua personalidade: o religioso e o de naturalista.

A romaria do Muquém é a mais antiga do Brasil, começando em 1748, foi crescendo durante muitos anos até atingir seu auge nos meados do século dezenove. Foi motivo do escritor de”Escrava Isaura”, Bernardo Guimarães, escrever seu livro de estréia, “O Ermitão do Muquém”, considerado o primeiro romance regional do Brasil. Com a considerável distância dos centros maiores e dificuldades de acesso, foram surgindo novos núcleos dedicados a Nossa Senhora da Abadia e com o tempo esta romaria foi perdendo seu ímpeto, até chegar ao quase esquecimento.  Sem a riqueza do ouro e depois, do turismo religioso, o próprio Muquém se encolheu, sendo hoje um pequeno distrito de Niquelândia, norte de Goiás.     

            O relato:

“Corria o mês de julho quando o Capitão Ermindo Diocliciano de Loyola me convidou para fazer uma viagem ao Muquém e marcou nosso encontro para o dia primeiro de agosto na Fazenda Lambari, onde se acha situada a Lagoa Formosa, tida pelos geógrafos como a cabeceira do Rio Maranhão. Perder a ocasião de fazer uma viagem em companhia de um excelente companheiro e de sua senhora, cheia de desvelos e cuidados, seria uma falta imperdoável e quando a senhora Escolástica confirmou seu desejo da minha companhia, tratando-me como um filho, não mais hesitei e aceitei o convite. Na antevéspera da partida, o Capitão Vegilato me propôs estender minha viagem ao Rio Maranhão, estudá-lo e fazer um relatório a respeito da sua riqueza, da possibilidade de trabalhá-lo e do custo da exploração do ouro. Não podia me remunerar, mas pagaria todas as despesas. Consenti.”

Depois dos preparativos, no dia 2 de agosto de 1880 a comitiva partiu. O primeiro dia ocorreu sem muitos contratempos e Genettes pode até caçar “três perdizes e quatro codornas que ofereci a dona Escolástica”. Depois do primeiro pouso, a primeira refeição:

“Chamam-me para o almoço. São 6 horas. A mesa é um couro de gado, sobre o qual se estende uma alva toalha. Os talheres são de um metal que brilha como prata, os pratos de folhas de flandres. O Capitão Ermínio coloca uma garrafa de vinho ao seu lado e para copos, temos canecas de folhas... O eterno e saudável feijão, um arroz delicado e fumegante, as perdizes flanqueadas de fios de toucinhos, costeletas de porco salgadas, um prato de pindobas e mais que tudo, um excelente apetite faz-nos achar tudo delicioso. Assentados ou semideitados na relva, os primeiros instantes se passam em silêncio, cada um de nós está ocupado em satisfazer seu estômago, estimulado pelo ar vivo da manhã. Duas canecas de vinho a cada um de nós regaram fartamente os suculentos guisados. Em seguida, tomamos café.

Num repente, tudo se torna movimento ao nosso redor. Carregam-se os animais e as sete e um quarto, tendo montado a cavalo, partimos alegres como jovens estudantes. Na medida em que íamos progredindo, novos romeiros aderiam, caminhando lentamente, uns a pé puxando os animais, outros carregando sobre a cabeça potes ou gamelas por penitência. De sorte que a procissão ficou cerca de mais de dois quilômetros em fila singela. A linguagem dos sertanejos, certas locuções rasteiras, equívocos e quiprocós, despertavam o riso mais franco.”

            Genettes estava atento a tudo:

“Três quilômetros além passamos por uma várzea coberta de mata virgem e no centro dela, o Cocal. O rio, nesta estação está muito diminuído. Corria sob uma praia e fundo de arco com magnífico cascalho aurífero. Sua largura orçava em 25 metros e seu fundo entre 10 a 45 centímetros.  As águas muito puras tinham um gosto salobro devido às camadas calcárias que atravessa...”

            Mais adiante, acha o leito de um rio seco:

“Acho pedras roladas, areia silicosa, pedaços de ferro oligisto e muitos rochedos calcários. Vejo sulcos provenientes da passagem da água. É tão evidente esta página da hidrografia antiga, que meus companheiros reconhecem comigo o leito desse grande rio.”

            Passam pela Fazenda Barreiro do Alferes João Quirino de Lima e pelo morro do Cuscuzeiro, “ponto culminante das Serras das Vertentes”:

            No Córrego Rico, chegaram na fazenda do senhor Manoel de Almeida. Nas conversas com Genettes, o senhor Manoel de Almeida fez uma revelação surpreendente para Genettes:

          “-  Nos locais que visitei e que ficam aqui perto, achei ossos de animais e de gentes gigantes, que montam outras eras. Houve animais e homens muito maiores do que os de hoje.”

            Abismado, Genettes anotou:

            “O soldado que ouve o sinal do clarim não presta mais atenção do que eu neste momento. Dirigi o meu interlocutor mil perguntas e conheci esses lugares ossíferos que mais tarde pretendia explorar.”

           Genettes voltou cinco anos mais tarde e fez a descrição desses fósseis para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Entre eles, o do Arqueopterix, o gigante alado do Período Mesozóico.

             Voltando à romaria, num dos pernoites, Genettes protestou:

           “No meio da romaria, a prostituição e o jogo desenfreado ostentam suas odiosas galas. Há não mui longe de nossa barraca, uma ocupada por duas mulheres de vida denegrida, camélias de baixa escala que atraem grande número de rapazes. Ali, ao som do viol1ão, mistura-se as cantigas de vozes avinhadas e mais adiante, uma choça de palha recebe os jogadores. É uma constante disputa, enquanto que de um pouso de sertanejos, se levanta, como protesto, o hino da Virgem de Abadia: Oh!Filho do eterno Pai/De Deus Filho da mãe pia/Ao Espírito Santo esposa/Oh! Senhora da Abadia!

        Duzentas vozes respondem. De todos os lados se levanta um canto em louvor à mãe do Salvador. Caímos todos de joelho... Lágrimas umedeceram os meus olhos.”

Já perto do Santuário do Muquém, a romaria atingia sua extensão a perto de seis quilômetros. Tinha gente de todo o Brasil, mas o que chamou atenção eram os romeiros nordestinos “vestidos de gibão e chapéu de couro”.

No rio Bagagem, junto à Vila, Genettes assistiu um mergulho em busca de ouro do senhor Dionísio, sacristão do Muquém:

            “O mergulho se faz da seguinte maneira: o mergulhador inteiramente nu, leva consigo um saco de couro, cuja boca tem um círculo de ferro ao qual está amarrada uma corda feita de casca de cipó de imbu. Tudo preparado, o mergulhador ata os pés uma laje e se deixa escorregar por uma corda onde os companheiros seguram, chegando até o fundo do rio. Desata a pedra e com os pés arrasta o cascalho do rio para a boca do saco, dá o sinal e os companheiros puxam a corda e o fazem surgir à flor d’água. Depois puxam o saco com as pedras. Assim praticava Dionísio, demorando-se cerca de três a quatro minutos debaixo d’água. Quando finalmente sai, fica sufocado, levando um quarto de hora para se estabelecer. Tiram então o saco e derramam o conteúdo sobre o couro para tirar com água a areia e apurar o conteúdo da bateia. O resultado da operação foi uma folheta de ouro de 44 oitava, que foi vendida ao senhor José Joaquim da Silva.”

             Finalmente, o santuário:

            “O Muquém consta de uma dúzia de casas que circunda uma igreja dedicada a São Thomé, na qual a Virgem tem somente um altar. Toda a lenda do Muquém é apócrifa e o romance de Bernardo Guimarães é inteiramente de pura imaginação. A verdade é esta:

          Em 1735 Antonio de Souza Bastos Tomar descobriu São José dos Tocantins onde fundou uma povoação, que bem depressa cresceu por causa do ouro que ali se encontrava. Traíras foi descoberta no mesmo ano pelos mesmos pioneiros. A febre do ouro fez com que outros mineiros se espalhassem pelos contornos de São João, Muquém, Cachoeira de Santa Rita, Cocal e Água Quente. Em 1737 um mineiro elevou a Igreja de São Thomé e um altar foi reservado para Nossa Senhora, sob o título de Abadia e uma imagem foi mandada vir de Portugal pelo porto da Bahia. A fé fez o resto e bem depressa o sertão retumbou com a narração dos milagres feitos pela Nossa Senhora do Muquém.”

            Durante todo o período da festa de 1880, Genettes fez as pregações e ficou ocupado nas missas. Mas o que o chocou foram os exageros:

         “No segundo dia de minha estada, depois do ofício da noite, me recolhi ao quarto. Logo fui surpreendido por gritos e vaias, dados pelos rapazes em volta da igreja. Receando algum desacato, corri para o adro e qual não foi minha estupefação quando vi um homem de joelhos e com as mãos no chão, encilhado como um cavalo, com encilhão de senhora e uma mulher montada no selim, rodeada de velas e cantando rezas. O grupo ia arrastando mais de cem rapazes que gritavam: “toca o sandeiro, sinhá!”, “pôe o chicote no burro!”, “o cavalo está frouxo!”. Atirei-me no meio da rapaziada e cheguei na cavaleira, repreendendo-a e mandando que o marido assumisse a posição vertical. Ao que me respondeu:

            - Não pode ser, senhor padre... Prometi a Nossa Senhora que iria montar no meu homem!

A estas palavras da mulher, estrondosas gargalhadas fizeram tremer os muros da igreja. Ouvindo outras palavras de maior obscenidade, fiquei fora de mim, arranquei a mulher do selim e falei ao marido:

            - Levanta-se basbaque! Não vê a maneira ridícula como é tratado?

            Voltando-me para a rapaziada, continuei:

            - Conheço muito de vocês, são homens de educação e todos devem ter dó da ignorância e da superstição que mergulhou o sertão! Basta de gracejos indignos!

            Humildemente todos baixaram a cabeça e regressamos acompanhados pelo povo. Ao despedir-me alguém gritou um viva a meu nome. Isto me fez conhecer que me tinham compreendido.”

             Fim de festa.
“Finalmente, no dia 18 retiram-se os romeiros e com eles foram os comerciantes de Formosa, Meia Ponte e outros lugares. Eu e mais uma comitiva de 18 senhoras e 22 cavaleiros – além dos criados – vamos para São José dos Tocantins (hoje Niquelândia). O Sr. José Joaquim da Silva põe tudo em movimento. Na viagem, ele vai narrando-me a história da localidade e me diz que em sua mocidade alcançou ainda muitos homens do século passado (18), dos quais ouvira as narrações das grandezas de São José e Traíras, das rivalidades entre as duas localidades e das riquezas territoriais. Assim caminhamos por mais de seis quilômetros.” 

Observa também “grandes regos (sulcos para conduzir água) que vem das cabeceiras do Rio do Peixe e que levava outrora as águas às lavras em exploração. Alguns têm até 40 metros ou mais de comprimento, se enrosca aos flancos dos morros, rodeiam grutas profundas e atravessamos outras em bicas já arruinadas.”

              Em São José Genettes viu o esplendor da igreja matriz “onde o ouro brilha e resplandece em toda parte”.

              No dia 24 passou por Traíras. “A matriz é uma obra prima de escultura, os altares bem feitos, talvez até mais que os de São José. A cadeia é uma construção segura e serve de prisão à justiça de São José...”

              Finalmente, Genettes chega ao Rio Maranhão.

          “Há no Maranhão poços profundíssimos e mergulhadores têm ido buscar o ouro fundeando o rio. Alguns sacos de cascalho têm tirado grandes cópias de ouro, mas isto é exceção, não a regra. A cachoeira do Machadinho foi mal explorada pelo senhor Valle, engenheiro francês, que vinha como encarregado da exploração do Rio Maranhão.

            Desci o Maranhão durante três dias de viagem, costeando suas praias e examinando suas rochas. A exploração desses rios pelos antigos mineiros foi superficial, mas eles deviam naturalmente recuar diante do alto valor para desviar o rio. A dureza da rocha somente pode ser quebrada com dinamite e isto elevaria a soma no preço da mão de obra e o produto da exploração na maioria das vezes não compensaria as despesas.

           Quanto a mim, o lucro que tirei foi a de uma soberba descompostura e ainda o título de quadrilheiro, estampado em uma correspondência no jornal Diário de Notícias, assinado pelo concessionário Fagundes.”


      BOX

     GENETTES, UM PADRE- MÉDICO SABIDO E IRRIQUIETO.
 

     Genettes era um jovem médico francês, servindo ao navio Minerva, quando em 1835, no Senegal, bateu-se em duelo com um colega oficial de bordo, matando-o e por isso foi expulso por seu capitão no Porto do Rio de Janeiro. Lá, influenciado por conterrâneos, pediu uma audiência ao Regente Feijó que lhe aconselhou: “O Regente disse-me que o Brasil iria cobrir-lhe com a bandeira imperial (ajudar) mas para tanto seria necessário que me retirasse para o interior. Deu-me uma carta de recomendação e segui com o Major Revière para o interior.” Fez a viagem do Rio de Janeiro até Ouro Preto em quase um ano, observando tudo, inclusive aprendendo o português na Fazenda de Antonio Monteiro de Barros, em Feijão Cru (hoje Leopoldina-MG). Em 1842 participou como médico na Revolução Liberal (liderada por Theophilo Ottoni). Foi preso com seus companheiros, ficando nesta condição até 1844. Anistiado, descobriu a Bagagem Diamantina, (onde enriqueceu Dona Beija com seu famoso lupanar) e administrou-a para o governo provincial até 1857. Mudou-se então para Uberaba, onde foi “de tudo um muito”. Fundou o primeiro jornal (Echo do Sertão), foi delegado de polícia, promotor público, eleitor geral e especial, culminando com o cargo de Prefeito Municipal (gestão 1865-1869). No seu jornal promoveu a mudança do nome “Sertão da Farinha Podre” – como a região era chamada - para “Triângulo Mineiro”,  defendendo sua independência de Minas e anexação a São Paulo. Em Uberaba fundou hospitais, teatros e escolas. Morrendo sua mulher em 1875, ficou tão desolado que aceitou ser padre no Planalto Central onde também não parou, seja estudando o solo goiano e fundando a cidade de São João do Cavaleiro Em Pirenópolis descobriu a Cidade Perdida, uma vasta formação rochosa imitando  muralhas de fortes, ruas perfeitamente traçadas, palácios e até túmulos. Escreveu livros de geologia, romances, peças de teatro e artigos nos jornais  Publicador Goiano e Província de Goiás. Morreu em 1889 e está enterrado na cidade que fundou.

Saiba mais

Wanke, Luiz Ernesto Wanke e Marcos Luiz Wanke – Brasil Chinês - A Descoberta da América pelos Chineses. Editora Lewi, 2009. Aonde se encontra o relato integral de Genettes da viagem Rio-Ouro Preto de 1836, quando ele se encontrou com os Coropós e descobriu abismado que aqueles índios eram taoistas.

Martins, Mario Ribeiro – Quem foi Trigant de Genettes? Site Usina de Letras. Uma biografia.

Guimarães, Bernardo – O Ermitão do Muquém – Instituto Nacional do Livro – 1972 - Romance regional brasileiro sobre a Romaria ao Muquém.   
 

ILUSTRAÇÕES:


GENETTES

OS ESCRITOS DE GENETTES: esclarecimento: esta página é a que ele anota em 1836, surpreso, que uma índia coropó diz Tao para significar Deus. Com base neste depoimento, eu e meu filho, escrevemos o livro citado no “leia mais”.

 

 

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