Saudade - por Anchieta Antuness

Saudade - por Anchieta Antuness

S A U D A D E

 

Tem gente que sente, eu mastigo. Quando ela vem  com muita força eu a transformo em massa de moldagem e faço uma porção de esculturas bizarras. Tenho um almoxarifado somente para as saudades mais contundentes, aquelas que me marcaram mesmo, como o primeiro beijo que  dei em minha mulher Dea, na mata que rodeia o aeroporto de Montevideo, “Carrasco”. Hei! Gente!  Carrasco é o nome do aeroporto, e não do beijo ou da saudade. Por favor, não confundam.

         Foi um beijo relâmpago, onírico e fugaz, quando a moçoila correu para casa, procurando a segurança do olhar materno. Um beijo trigueiro, roubado pelo gato ladrão, rápido como um felino, sem cheiro nem cor; apenas um roçar de lábios e inserido “na memória gravada a cinzel.”

         Esta saudade, ou o beijo,  transformou-se em vida a dois; nossas vidas que hoje desfrutamos juntos. De vez em quando a saudade nos acomete, quando pensamos  nos  momentos  desfrutados em viagens surrealistas, em passeios submarinos, na gruta onde pisamos e esmagamos a cabeça do leviatã, transformando-o  em lava  vulcânica.

         Saudades há, que não sabemos definir  sua origem ou presença. Surgem nos momentos mais inesperados, inusitados, trazendo-nos surpresas de um passado longínquo. Vem surgindo como uma nuvem de areia no deserto da memória; chega, apresenta-se e pergunta: lembra de mim? Estive com você naquele ano de viagens múltiplas, de devaneios e descobrimentos prazenteiros. Como você gostou de pescar no lago das ilusões, resolvi transformar aqueles momentos em saudade para um  dia vir visitá-lo quando menos esperasse. Aqui estou e o lago já não é o mesmo, está poluído, cheio de casas ao redor, jogando tudo que não presta em suas águas outrora limpas. 

         Tenho saudades dos lagos do  sul do Chile quando vi aquele homem pescando salmão para o casal amigo que viria visitá-lo naquele domingo. Em meia hora ele pescou uns 15 peixes de bom tamanho. Quanta fartura, quanta brancura na água e nas escamas dos peixes brilhantes. Tenho saudade do “hotelzinho” de cidade pequena, na beira do lago, com um café da manhã digno dos deuses; do frio matinal acalmando o sol intruso, do vinho que tomamos,  sentados no banco da praça, eu e Dea, sozinhos, e toda a cidade à nossa disposição. Na mesma lojinha   onde  comprei o vinho, também adquiri um “saca-rolhas” ( em  espanhol= “saca-corcho”), fomos caminhando com a alegria da vida resolvida, em direção à praça arborizada, porém sem nenhuma folha para farfalhar em nossos ouvidos. O primeiro trago tinha o gosto de tanino, o segundo estava maravilhosamente maravilhoso, um néctar, não dos deuses, mas, um sabor de Anchieta e Dea. Vida pura, sem mistura, sem açúcar, ou qualquer ingerência exterior.

O que comemos no almoço? Advinha! A dona  do hotel tinha ido se divertir na beira do lago, pescando o almoço dos hospedes. Comemos salmão; fresquinho como manda o figurino, digo, o cardápio.

         O preço da saudade varia de acordo com a mentalidade do saudoso. Pra mim não tem preço, pode ser um milhão, ou um milhinho, ou seja, uma moeda. Aliás, estou redondamente enganado, porque lembrança de coisas ruins não é saudade, é frustração e raiva. Saudade só existe para o bem bom, para aquelas coisas que nos  aconteceram e nos marcaram  de maneira positiva. Sinto saudade da brisa, porque do calor quero é distancia.

         No México tomei água de coco verde com pimenta. Neste caso, a saudade está navegando no barco do momento “esdrúxulo” , já que não gosto de pimenta. Dea comeu doce de “tamarindo” picante. Creio que os mexicanos todas as manhãs, antes de sair de casa, tomam uma dose de molho de pimenta, para lubrificar a vida. Na rua vendem fatias de manga com  “chile” . Parece mentira, mas é só ir lá e conferir.

         Hoje  quero ser  hospede da vida, para forjar saudade, esculpir outroras, e delinear reservas autorais.  Hoje  para comer preciso do melhor da “Bodega de Dona Santa”; vou escolher minha janta: torresmo crocante, macaxeira espapaçada na manteiga de garrafa, carne de sol assada na trempe do fundo do  quintal, com carvão de mulungu, quero tapioca de coco, jerimum caboclo cozinhado com casca, batata doce e inhame. Pra sobremesa prefiro “baba de moça” feito com a laminha do coco verde, bastante  açúcar  cristal,  alguns cravos da índia, e uma grande pitada de cheiro  no“cangote” da cozinheira.   Tudo, claro, acompanhado de um café preto retinto, torrado na lata de tinta, com o fundo furado pra escorrer a ultima gota de seiva.

         Pra estralar a língua de prazer e puro gozo, preciso de uma saliva adoçada com o mel do encantamento, aquele da colméia coberta com a asa do anjo dos sonhos  preservados para a eternidade, e, por isto mesmo, vou guardar esse momento no almoxarifado de saudades especiais, para daqui a alguns anos apanhá-la com os dedos enluvados e gozar dela  à luz da lua cheia.

Saudade a gente faz como quer, é só ter imaginação e não ter medo do ridículo. Eu mesmo adoro sobrevoar meus dias escanchado no lombo da saudade,  entre suas asas, e olhar para baixo como se estivesse escolhendo meu melhor momento...   “para   revivê-lo” .

 

ALAOMPE

Anchieta Antunes – Copoyright

Gravatá – 30/11/2014.

 

 

 

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