Tempo Frio e Coração Quente - por Lígia Beltrão

Tempo Frio e Coração Quente - por Lígia Beltrão

Tempo Frio e Coração Quente

 

       Era frio aquele vento que soprava mostrando a sua presença e acariciando o meu rosto num gesto atrevido, quase doendo, me fazendo tremer e olhar o horizonte encoberto por aquela cerração que deixava o tempo lindo. As flores selvagens invadiam os campos colorindo a relva verdinha. O tempo estava vestido de branco. De paz. Dava-me um prazer imenso acordar nessas manhãs cinzentas e olhar a paisagem assim, meio chorosa, do resto do inverno. O Divino se fazia presente diante de mim. Dentro de mim. Portugal estava se entranhando no meu sangue, fazendo-o pulsar com maior prazer e determinação. Se antes eu tinha paixão por esta terra, hoje eu tenho a gratidão por ela ter me dado o amor. E ele está aqui, bem arraigado dentro de mim.

       A gata se aproximava manhosa me dando o bom dia habitual e se enroscava nos meus pés, esperando os carinhos costumeiros que eu lhe fazia. Mais distante, comendo suas ervas, as ovelhas também me saudavam alegremente. Respondia sempre àqueles cumprimentos, com o coração meio apertado, pois sabia que a hora da despedida logo chegaria e eu precisava partir. Mas voltaria. Sim, voltaria, porque ali eu deixaria o meu coração, fincado naquele chão que eu estava a venerar. Elas me olhavam como se entendessem o que eu lhes falava e respondiam naquele conversar que só eu e elas entendíamos. Saía para tomar o pequeno almoço na pastelaria, que para nós é o café da manhã, aproveitava às vezes, para arrumar o cabelo no salão, que fica em frente, e depois, cheia de alegria ia arruar por aqueles lugares lindos.

       Namorava o rio que passava, murmurando poesia, decidido no seu caminhar costumeiro, aqui e acolá despencando numa gargalhada feliz, para mostrar a sua superioridade ao pular sobre as pedras que lhe servem de leito. As flores das acácias sorriam, despertando a beleza das pedras que adornam o lugar, agora pintado do seu amarelo. O céu cobria com o seu manto azul a Divina criação da vida. Deus deve estar a contemplar extasiado, a sua obra magnífica... Caminhei por aquele chão como se pisasse nas nuvens, por medo de maculá-lo. Como eu amo essa terra, que grita exuberância! Nunca me cansei de andar por alí. Havia em mim um desejo oculto de entregar-me àquele chão, já não tão desconhecido. Fechava os olhos e voava nos sonhos da vida, que me prometia à grandeza da fantasia, que se pintava diante de mim, mas que breve haveria de se tornar realidade na vivência de cada um dos meus dias.

       Sítio (lugar) dourado de acácias amarelas com cheiro de vinho, das vindimas do lugar. Alí eu cometi todos os pecados que me entonteceram, degustei-os saboreando cada gole, e ali, encantada, conheci os desejos da alma que me levaram ao mundo do amor. E tanto amei e fui amada em deliciosas transgressões que me levaram ao céu de mim mesma. Encontrei a minha alma. Aquela que procurei vida após vida e que se perdia em promessas vãs, nunca inúteis, mas que vieram para ensinar-me que o amor é mais, muito mais, do que se fala, e que um dia eu poderia ter imaginado. Amor mesmo é esse encontro mágico de duas almas que se tocam e transformam-se numa só. Conheci essa magia. Descobri o sabor do beijo de amor verdadeiro. Indecifrável. Tenho a certeza que as estrelas caem do céu nessas horas, silenciosas e pálidas de espanto pelo brilho dos nossos olhares. Senti as duas mãos que me seguraram precisas nas horas em que a minha criança interior resolvia pular de alegria e atirar-se em seus braços fortes, sendo acolhida pelos risos da felicidade.

       Conheci os bailes realizados em alguns sítios (cidades) onde todos da aldeia brincavam e riam e se entregavam a alegria da festa e da dança, e eu, mesmo dançando mal, senti o prazer de rodopiar em seus braços e ver-me refletida nos seus olhos apaixonados. Isso é a felicidade. Fui encontra-la lá do outro lado do oceano. Venci as águas. Nada mais me mete medo. Lembro alguns versos de Florbela Espanca que perguntam: “Li um dia, não sei onde / Que em todos os namorados / Uns amam muito, e os outros / Contentam-se em ser amados. / Fico a cismar pensativa / Neste mistério encantado... / Diga pra mim: de nós dois / Quem ama e quem é amado”?...

       Respondo com toda a certeza do coração, que, neste nosso caso, os dois amamos do mesmo jeito e do mesmo tamanho. Temos os mesmos sonhos e nossos passos na vida caminham em total harmonia. Assim, hei de voltar à minha terra prometida, porque lá está o meu amor e a minha vida. Enquanto eu estou por aqui, tenho certeza que os rios choram sem parar esperando a minha volta e os ventos cantam baixinho ninando o nosso amor e o espalhando pelas encantadas montanhas de pedras, fazendo florir ainda mais as acácias amarelas, douradas como o sol que se descortina agora, alumiando a primavera. Espera por mim, Portugal, estou voltando. Espera por mim, amor... Estou chegando... Ainda que já esteja frio, o meu coração estará quente.

 

 

 

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