Um fiapinho de nada - por Fernando Jacques - JAX

Um fiapinho de nada - por Fernando Jacques - JAX

UM FIAPINHO DE NADA

JAX            

Como bom descendente de portugueses, Carvalho adorava uma rica bacalhoada. Dentre outras memoráveis degustações do delicioso prato, a mais recente haveria de ficar inesquecível para ele.

            Ao deixar a casa do anfitrião, a caminho do ponto de ônibus, Carvalho continuava a rememorar os sabores daquela fantástica bacalhoada, mais uma em seu currículo. Lambia os lábios e os dentes, como que a conferir mais paladar à rememoração, quando sentiu, junto a um dos incisivos, um fiapo de bacalhau que ali se prendera. Tentou retirá-lo com um movimento ascendente mais firme da língua, mas não foi bem sucedido. Como havia algumas pessoas no ponto de ônibus, evitou a tentação de levar os dedos à boca para remover o intruso. Não queria passar por mal-educado, não senhor.

            Embora já tarde da noite, o ônibus estava quase cheio, o que levou o passageiro a manter sua paciência de homem polido, apesar do incômodo que lhe causava o citado fiapo. Não demoraria a chegar a sua casa, onde cuidaria de resolver o problema prontamente. A paciência de Carvalho era mera aparência, porém. De tempos em tempos, lá ia a língua afoita, em mais uma tentativa frustrada de remover o fiapinho.

            Chegou à casa, com o propósito de dirigir-se direto ao banheiro, em busca do socorro salvador da escova de dentes ou do fio dental...se ainda houvesse. Ocorreu-lhe que o fio dental se havia acabado dias atrás e não estava seguro se comprara outro. Ao entrar, acender as luzes e trancar a porta, distraiu-se a ver-se no espelho da sala. Parecia mais cansado do que realmente se sentia, mas aquela imagem precipitou seu desejo de deitar-se. Passou rapidamente pelo lavabo, para despedir-se das várias cervejas do jantar, e jogou-se na cama, pesado, dormindo logo.

            De manhã, levantou-se ainda um tanto sonolento. Lavou o rosto, escovou os dentes displicentemente, tomou o café e lembrou-se, tarde demais, de que, naquela segunda-feira, só entraria no escritório ao meio-dia. Leu o jornal, verificou se havia contas a pagar no dia, e saiu de casa, após rápida refeição. Enquanto aguardava o ônibus é que voltou a recordar-se do fiapinho da véspera. Já deveria ter ido embora, após as duas escovações daquele dia. Levou a língua ao incisivo e constatou, com certa contrariedade, que a praga ainda ali estava, persistente e desafiante.

            Novamente se viu impossibilitado de uma ação mais resoluta contra o fiapo intruso, eis que, ademais do ônibus cheio, uma senhora de pé a seu lado parecia mirá-lo com ar inquisidor. Conjecturou que ela havia percebido os constantes movimentos de língua que fazia, pela frente e por trás do incisivo, no intuito de livrar-se do fiapo. Raios! Já não se tem liberdade para fazer o que se quer, nem de boca fechada! Tão concentrado em seu pequeno drama pessoal, Carvalho nem suspeitou que o olhar nele fixado pela tal senhora traduzia somente o desejo, meio evidente, de que ele lhe oferecesse seu lugar. Nem o suspiro algo exasperado que ela deixou escapar quando ele finalmente se levantou para saltar do ônibus foi capaz de revelar a verdade ao passageiro angustiado pela incômoda presença do resto de bacalhau entre os dentes. Como esperar cavalheirismo de alguém em tal situação?

            Caminhou célere para o escritório, onde esperava arranjar uma linha, palito, o que fosse, para desalojar aquele resquício de um bacalhau vingativo. Sim, só podia entender que se tratava de vingança do peixe, insatisfeito por haver sido pescado, salgado, cozido e devorado impiedosamente naquela noite que começava a estragar-se na memória de Carvalho.  O que encontrou em sua mesa de trabalho, no entanto, foi uma farta pilha de papéis que requeriam providências imediatas. Entre uma providência e outra, rodou os olhos pela sala e considerou estarem todos igualmente ocupados. Seu colega defronte não estava na mesa. Carvalho começou a levar a mão à boca para atacar o fiapo, quando o diabo do colega reapareceu, perguntando-lhe se havia falado com o Dr. Moura. Respondeu que ainda não, talvez sem disfarçar seu aborrecimento com a indesejada interrupção da pergunta.

            Levantou-se e rumou para o bebedouro, onde poderia tentar remover o fiapo sem que os demais percebessem, mas seu plano foi abortado por D. Isaura, quem, tentando ser amável, observou que o bebedouro estava quebrado desde a semana passada. Carvalho suspirou, resignado, e mudou de rumo, indo ao banheiro coletivo do andar. Vendo-se só, vasculhou a roupa e, ao encontrar um fio de linha, arrancou-o para passar nos dentes. Antes de chegar ao ponto onde se achava o fiapo de bacalhau, a linha não resistiu e rompeu-se, acrescentando pressão entre os dentes. Furioso com o ocorrido, Carvalho pôs-se a esgravatar o vão dos dentes com a unha do polegar, sem mais preocupar-se em ser surpreendido em tal operação por outro eventual usuário do banheiro. Conseguiu extrair a linha, lavou as mãos e voltou rápido para sua mesa, a fim de evitar que o supervisor pudesse reclamar de sua ausência prolongada.

            Para sua tristeza, o fiapinho continuava lá a torturá-lo. O jeito era aguardar o fim do expediente e o retorno à casa, onde tomaria providências definitivas contra o intruso. As horas arrastaram-se o resto do dia, assim como se arrastaram o elevador do escritório e o ônibus. Este último, então, transitou mais lento do que nunca, demorando uma eternidade para chegar ao ponto final, da linha, bem como da paciência de Carvalho.

            Após a mais ágil de suas caminhadas até o lar nos últimos tempos, o já sorridente Carvalho entrou no banheiro e, por força do hábito ao longo daquele dia, levou a língua aos dentes. Para sua surpresa, o relutante fiapinho não opôs qualquer resistência desta feita e saiu mansamente, na ponta da língua. Deixara sua trincheira da mesma maneira como ali se instalara: quando bem quis.

            Carvalho tomou o desaforado com o indicador e o polegar e, como se isso pudesse compensar sua agrura com aquele inglório resquício de bacalhau, arremessou-o na privada e pressionou a válvula com força, de modo quase violento. Adeus, peste!

            Mais tranquilo, comeu e bebeu fartamente durante o jantar, à guisa de compensação. A bem da verdade, exagerou na dose. Durante a madrugada, seu excesso causou-lhe forte dor de barriga e a ida apressada ao banheiro.

            Ao levantar a tampa da privada, ainda teve tempo e lucidez para ver o fiapo de bacalhau, que boiava sereno sobre a água límpida, como se nada houvesse.

 

 

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