A Viva Morte - por Lígia Beltrão

A Viva Morte - por Lígia Beltrão

A Viva Morte

 

       Ela me toca com sua mão fria. Sinto o arrepio que percorre todo o meu dorso e de repente espreme meu peito, amassando-o como se fosse um velho pedaço de papel. Oh, dor desumana, que me leva a um desencanto profundo e me faz pensar seriamente no caminho da vida. Ela está ali a espreitar-me. Curiosa. Ameaçadora. Pronta para me abocanhar, mas não permitirei. Não tão cedo. Tenho ainda muitos caminhos a vaticinar. Muitas histórias para viver, mas ela está sempre ali, nos mostrando o seu poder de parar o tempo, o nosso tempo. Leva os que nos rodeia e vai nos fazendo assistir essa peça onde a dor exala seu perfume mais forte. Gargalha dos nossos medos. Mostra-nos aquela boca faminta e escancarada pela qual adentramos sem mais forças para lutar. Seremos então vencidos? Vendo-a, eu que em nada acredito além do que me foi ensinado, de repente vejo-me acreditando em tudo, porque descobri que penso, e dou-me o direito de pensar o que quero. E o Deus que inventamos e magicamente passou a existir vira o objetivo maior da nossa fé. É daí, que vem a humana força do ser, de nascer dia após dia, para irmos até o rito final.

       Palavras, são só palavras, mas que valem tudo na hora em que nada mais nos resta. E elas, inexplicavelmente ainda podem nos salvar. Vivemos dormindo o sono dos justos cercados de uma vida fútil marchando a grande marcha do tempo. Fenecemos lentamente e nem nos damos conta que a grande caminhada acaba um dia. De repente alguém se vai nessa viagem ao desconhecido, aí nos damos conta de que escrevemos molhado uma coisa imensa, chamada tristeza. Continuamos esperando o futuro. Buscamos a salvação de nós mesmos, ainda que as contradições nos levem a enveredar por caminhos tantos e desconhecidos, acreditamos na possibilidade do existir. A força da palavra expressa nos diz que continuamos. Um dia há de calar-se e virar uma leve brisa quase inaudível. Estaria no silêncio a força da sobrevivência, em nós, dos que amamos? Ser forte é tão difícil que calamos no peito o grito molhado de sangue para vencermos as dores. Ó Deus! Dai-nos a força para prosseguir!

       Tenho dentro de mim uma coisa incógnita que sente dificuldade em se exprimir. Sinto medo desse meu eu, quando resolver usar, também, as palavras, o que dirá? Esse desconhecido eu, que nada mais é que o paradoxo de mim. Vertente do meu ser, que para resguardar-me permanece mudo e quieto, só observando a hora certa da transmutação. Desde que descobri que morrerei um dia, e num dia indeterminado por mim, fiquei mais corajosa, ainda que aquele meu eu relute em mostrar-se, mas ainda assim, vive a cutucar-me com a aspereza de um cacto em flor. Até que venha a compreensão de mim mesma, flutuo na vacuidade com esse lado impalpável que só eu conheço, e que por vezes, não sei se é um regato manso correndo no campo, onde me movo como um animal seguro e sereno da minha força, ou um vulcão de larvas ardentes a gritar a revolta do incompreensível senso de sobrevivência brutal e inútil que acompanha a luta por cada dia, mas que é imprescindível à sobrevivência das horas.

       A divindade da vida está na sua condição de ser passageira. E vamos vivendo-a na secreta harmonia dos dias, até que descobrimos que a fazemos assim, aberta como o dia dourado de sol a brilhar sobre as flores e secreta como uma noite de tempestade e vendaval, onde só o eco ameaçador de trovões grita a sua ira, e os relâmpagos que alumiam, matando, na ânsia de mostrar o instante final, traduzem a sentença escrita do livro ameaçador do possível. É quando entendemos que a vida mesmo escancarada é a incógnita de uma alma secreta. Secreta como a morte. Depois da sua passagem só as palavras que foram fincadas nas pedras do tempo, ecoam, gritando os brados escritos da pena adormecida. Mesmo que as cortinas se fechem a palavra escrita sobrevive. Assim, é que sobrevivem os homens.

 

 

 

 

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