Busca - por Lígia Beltrão

Busca - por Lígia Beltrão

BUSCA

 

       Hoje amanheci me procurando. Não a esta mulher de rosto já vincado, cabelos pintando-se de nuvens e que acha que aprendeu alguma coisa da vida. Não. Busco aquela menina de olhos vivos e brilhantes, que corria pelas ladeiras da sua cidade, com os cabelos longos desgrenhados pelo vento, o peito estufado de sonhos e carregando o tempo pela mão. A menina que era a dona de si mesmo e tinha no assobio do vento a coragem de ser. A menina que desafiava o mundo e a vida, porque achava que tudo podia. Onde está a minha menina? Onde eu a deixei? Nos becos escuros, onde se escondia nas brincadeiras infantis ou nas auroras mornas dos dias promissores de então? Quanta saudade eu sinto hoje daquela menina! Tão tímida e ao mesmo tempo tão senhora de si. Em que gaveta do móvel do esquecimento eu a terei deixado?

 

       Cutuco lá dentro, no mais profundo de mim. Reviro guardados impregnados de mofo pela frieza dos tempos, e são tantos, que me sinto desconhecida de mim mesma. Guardo a imagem dos dias cinzentos de inverno, onde a garoa teimava em enfeitar as horas do amanhecer. Pesco no meu inconsciente o bater dos dentes nas noites frias do inverno. A minha paisagem imaginária se descortina muito além do horizonte. O cheiro da terra molhada do meu quintal faz-me percorrer quilômetros, pra lá e pra cá, de um chão que a cronologia não esfacelou. Lembro-me de uma vida inteira eternizando o já vivido.

 

       Tenho recordações inconfessáveis, claro, nunca revelamos os nossos segredos de todo, mas dentro de mim eles são imperecíveis. Fui senhora do mundo e não me dei conta de que ele era tão grande, porque ali, no meu mundo, eu podia tudo. Devaneava em repetidas e sigilosas vontades, e no altar da igreja que me viu cumprir todos os sacramentos, pedia perdão a Deus, pelo meu atrevimento de imaginar-me maior. Os deuses deviam escutar-me, pois não já foram humanos? E o São Sebastião com seus olhos de dor, via pelas frestas do meu coração e compreendia os meus sonhos gigantes.

 

       E Santo Antônio, que nem foi preciso pedir e já me arrumou marido, quando eu abria as pétalas ainda intumescidas da adolescência. Os anjos certamente tocaram suas trombetas em alusão ao momento, e eu achava que o mundo agora seria outro. Assim pensando, peguei a minha menina e trancafiei-a no mais profundo do passado. Agora, rogo preces aos deuses e santos e anjos, que certamente me protegeram dos seus pedestais a distancia, e me ampararam quando tantas vezes gritei agoniada por a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, para encontrar aquela garota que um dia se despiu de si mesma para ser só uma mulher.

 

       De súbito, olho no espelho do tempo e arranco as vestes que cobrem minhas lembranças, e vejo, como por encanto, eu menina. Ilumina o meu rosto o mesmo sorriso tímido e as bochechas coram-se envergonhadas. Ainda que vozes, não sei lá de onde, me atormentem com repreensões irrelevantes, não as ouvirei. Meus ouvidos estarão surdos aos alardes da hipocrisia. Num ato intempestivo, dissolverei o passado e serei alguém que não conheço. Fugirei de tudo que venha modelar-me. Não me reduzirei a um fantasma com asas podadas, acuado na gaveta dos arquivos confessos. Não tenho pressa, a minha menina está intacta dentro de mim. Quero o tempo que foi meu, sem horas marcadas, porque sei, que por mais que o faça ninguém consegue abastecer as bordas da existência. A minha menina grita: Corre menina! Corre!/Que o tempo é o senhor/Olha só como te leva/ Da vida todo o frescor!

 

 

 

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