Recordações de mim - por Lígia Beltrão

Recordações de mim - por Lígia Beltrão

Recordações de mim

 

       Recordo a casa da minha infância. Meus fantasmas me assombram silenciosos e ligeiros e riem das minhas saudades inúteis. Eu caminhava sobre aquele chão como se pisasse em estrelas. Ele alumiava reflexos de tantas coisas, que hoje se perderam no tempo e sobrevivem apenas dentro das minhas ingênuas e puras sombras. Faz tanto tempo, e é como se fosse ontem. Ali, vivi todos os meus sonhos de menina. Dos mais simples aos mais inconfessáveis. Onde eu me perdi de mim, por aqueles cômodos que nunca foram meus? Onde eu me encontrei? Em que espelho eu me vi refletida e sai correndo com medo de mim mesma? Quem sou eu? Tanto perguntei e perscrutei dentro das minhas insônias mudas.

       As paredes vestidas de imagens escondiam-se sob a umidade das lágrimas do impossível. Aquela casa me parecia eterna. Hoje, os fantasmas dos meus sonhos bailam sobre o chão que já não é mais o mesmo. Naquela casa simples cabia o meu mundo, que do portão pra fora virava um monstro medonho, de garras acesas prontas para me transformar em cinzas. Cinzas das horas dos meus devaneios. Aquela casa clamava por felicidade, mas chorava uma dor inexplicável suspirando saudades tantas.

       O terreno, em forma de quintal, que crescia lá no fundo, abrindo-se para um horizonte desconhecido tinha para mim a dimensão da eternidade. Na época do frio o seu chão lodoso ficava escorregadio e pequenos tufos de ervas o adornavam inteiro. Imponente, um mamoeiro fincado no seu coração, carregado do amarelo dos frutos, fazia a festa da fartura para mim e para os pássaros, que não perdiam tempo, e vinham saborear os mamões que caiam de tão maduros. Os acordes do crepúsculo silenciava tudo. Até mesmo uma cigarra atrevida que de quando em vez vinha cantar pendurada nas folhas do Jamelão, ou azeitona preta, refugiava-se do frio e calava-se tristonha.

       A cantiga mais bonita era a da máquina de costura, que virava a noite a suspirar, enchendo o silêncio noturno de ruídos, misturando os sons do trabalho árduo com os dos sonhos que se atrevia a sonhar naquela casa simples. O tempo era o dono e senhor de tudo e parecia ter preguiça de passar. E os dias se processando iguais... Iguais... Iguais... E o gerúndio se construindo na labuta dos dias e das noites. Os retratos nas paredes a olharem-me com os olhos fixos, como que me acompanhando na correria dos dias. Os sentimentos se agudizam à sombra da lembrança de um passado próximo e virtuoso. Hoje, parece que tudo era só um sonho.

       Aquela casa que fechou os ouvidos às minhas risadas de menina parece que nunca foi minha companheira de tantas traquinices. Esqueceu o cheiro que deixei impregnado. A transcendência se faz ao sabor do tempo, quando eu me afasto do lugar, o lugar que era tão meu, embora eu nunca a tenham enxergado no seu devido tamanho. O meu mundo resultou numa porta, que ao transpor, me fui partida. Ali ficou fincado para sempre o meu coração, gemendo os ais de uma despedida que nunca houve.

       Um dia lá voltei. Fui buscar de volta as confissões que deixei guardadas com ela como um segredo nosso, nas minhas horas de solidão e dor, mas senti-a fria e distante. Ela parecia não lembrar-se de mim. Eu era só uma estranha que adentrava aquela porta, atrevida, como quando era menina. Não tardo a descobrir, e nunca é tarde demais para descobrir, a fragilidade dos conceitos. Renovo-me na busca de mim mesma para ter forças e partir sem olhar para trás. Não quero escutar o barulho da porta se fechando.

Não digo adeus. Afinal, ali deixo um pouco das cinzas do meu tempo. Caminho em direção à vida com um grande nó prendendo o meu peito e um soluço engasgado na garganta. A vida é como é não há segredos. Está tudo à vista. Basta saber olhar...

 

                                                                  Lígia Beltrão      

 

                    

 

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